O esvaziamento libidinal do ego e o bloqueio do desejo sob a censura do superego: uma leitura psicanalítica a partir do caso do fiscal de caixa
Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208
Resumo
O
presente estudo propõe uma leitura psicanalítica sobre a perda do investimento
libidinal no contexto do trabalho e da vocação, tomando como referência o caso
de um fiscal de caixa que, após anos de dedicação, não encontra mais sentido em
suas atividades laborais nem motivação para exercer a profissão de psicólogo. O
fenômeno é analisado à luz das formulações de Freud e Lacan, com ênfase na
relação entre o ego, o superego e o desejo, buscando compreender como o excesso
de idealização e a censura superegóica podem conduzir ao esvaziamento
libidinal, à inibição do desejo e à alienação subjetiva diante do princípio de
prazer.
1.
Introdução
O
caso em análise refere-se a um sujeito que, embora formado em Psicologia e
movido inicialmente pelo desejo de ajudar pessoas a se libertarem de
sofrimentos emocionais e vícios, encontra-se atualmente exercendo a função de fiscal
de caixa em um supermercado. Com o passar do tempo, ele passa a perceber
que suas atividades cotidianas no ambiente comercial não correspondem mais ao
ideal simbólico que o motivava. O trabalho, antes associado à responsabilidade
e à estabilidade, torna-se fonte de cansaço psíquico, desinteresse e perda
de sentido existencial.
Esse
esvaziamento libidinal não se restringe à função no supermercado, mas se
estende também à prática da Psicologia, tanto no acolhimento clínico quanto no
desejo de atuar institucionalmente. O sujeito relata a incapacidade de
investir energia emocional em qualquer das esferas profissionais,
sinalizando um impasse subjetivo em que o desejo parece paralisado.
À
luz da Psicanálise, tal fenômeno pode ser compreendido como o resultado de um conflito
estrutural entre o ego e o superego, no qual o primeiro, esgotado pela
censura e pela exigência de perfeição, retira a energia libidinal dos objetos
externos e mergulha em um estado de retraimento narcísico. A análise a seguir
busca elucidar esse processo, articulando as contribuições teóricas de Freud e
Lacan sobre o investimento libidinal, o ideal do eu e o desejo.
2.
A libido como energia de investimento psíquico
Freud
(1914/1996), em Introdução ao narcisismo, define a libido como a energia
psíquica derivada das pulsões de vida (Eros), sendo o fundamento dos
investimentos amorosos do sujeito no mundo. O trabalho, as relações e os
projetos pessoais constituem objetos libidinais que recebem essa energia, na
medida em que o ego identifica neles uma possibilidade de satisfação e continuidade
do prazer.
Quando
o ego investe libido em um determinado objeto, significa que o mesmo é
sustentado por uma promessa de prazer simbólico, seja no reconhecimento social,
na realização pessoal ou no sentimento de utilidade. Contudo, quando o objeto
deixa de oferecer essa satisfação, o ego tende a retirar a libido,
produzindo o que Freud descreve como desinvestimento libidinal,
acompanhado de apatia e perda de sentido (Freud, 1917/1996).
No
caso do fiscal de caixa, observa-se que o ambiente de trabalho, marcado por
repetições, cobranças e ausência de gratificação simbólica, deixa de oferecer a
promessa de prazer que sustentava o investimento psíquico. O sujeito, ao
reconhecer a falta de sentido no cotidiano laboral, passa a vivenciar o
trabalho como alienante e desprazeroso, manifestando o esgotamento da libido
que antes sustentava sua permanência.
3.
A tensão entre o ideal do eu e a censura do superego
No
processo de socialização, o sujeito internaliza normas, valores e ideais
parentais que se condensam na instância do superego. Essa estrutura
psíquica, segundo Freud (1923/1996), tem função crítica e punitiva, regulando o
comportamento e os desejos do ego conforme padrões morais e culturais.
Quando
o superego se torna excessivamente rígido, ele impõe ao ego exigências de
perfeição e conduta idealizada, frequentemente incompatíveis com o princípio de
realidade. O ego, incapaz de satisfazer tais ideais, sente-se culpado e
desvalorizado, o que o conduz à inibição do desejo e à retirada da
energia libidinal dos objetos externos.
No
caso analisado, o sujeito demonstra um superego fortemente moralizado,
orientado por valores religiosos e ideais de pureza e dever. Essa instância
internalizada atua como censura sobre o desejo de transformação, dificultando
que o ego se autorize a buscar novas experiências profissionais. A consequência
é uma culpa inconsciente que paralisa o movimento desejante e sustenta o
sofrimento psíquico.
4.
O retorno narcísico e a melancolia do ego
Ao
perder a crença nos objetos externos como fontes de prazer, o ego tende a
recolher sua libido sobre si mesmo, num movimento que Freud (1917/1996)
denomina regressão narcísica. Esse processo ocorre quando o sujeito se
desilude dos investimentos libidinais no mundo e volta sua energia para o
próprio eu, em um esforço de autopreservação psíquica.
Entretanto,
quando o ego está sob a influência de um superego severo, essa regressão não
gera fortalecimento, mas melancolia, pois a energia retirada do mundo
não retorna como amor de si, e sim como autocrítica e sentimento de
insuficiência. O sujeito passa, então, a experimentar uma paralisia do
desejo, sentindo-se incapaz de encontrar prazer tanto nas atividades
externas quanto na própria interioridade.
Esse
quadro se reflete na apatia do fiscal de caixa diante tanto do trabalho quanto
da psicologia, como se o desejo tivesse se extinguido. Na realidade, trata-se
de uma libido aprisionada pela culpa, que impede o ego de investir-se novamente
em um projeto simbólico.
5.
O esvaziamento libidinal e a alienação do desejo
Lacan
(1953-1954/1986), ao reler Freud, destaca que o desejo é sempre desejo do
Outro, ou seja, nasce da falta e da relação com o campo simbólico. Quando o
sujeito se submete em excesso à voz do superego — que ordena “goza!” ou “seja
perfeito!” —, o desejo se torna alienado, perdendo sua espontaneidade.
Nesse
sentido, o ego que perdeu o desejo de investir energia libidinal no trabalho ou
na vocação está submetido a uma lei simbólica internalizada que
transformou o desejo em dever. O superego moralizado impede o gozo criativo do
sujeito, gerando um esvaziamento libidinal que é, ao mesmo tempo, sintoma e
protesto contra o ideal tirânico que o domina.
Lacan
(1960/1998) sugere que o sujeito só reencontra o desejo quando reconhece o
caráter ilusório do ideal do eu e se autoriza a desejar de modo singular, não
mais para satisfazer o Outro, mas para sustentar-se em sua própria falta.
Assim, o vazio experimentado pelo fiscal de caixa não é ausência de desejo, mas
um convite à reorientação libidinal, que só se realiza quando o sujeito
se permite desejar de forma autêntica.
6.
Caminho simbólico de reinvestimento
A
saída psicanalítica não é “forçar o desejo”, mas escutar o que o sintoma quer
dizer. O vazio não é o fim — é um chamado para o desejo se reorientar.
Em
outras palavras:
- o ego precisa reconhecer que já cumpriu o
papel que podia naquele ambiente;
- aceitar que o desejo mudou de objeto (talvez
precise de um novo modo de exercer o cuidado, mais livre e menos
institucionalizado);
- e, sobretudo, permitir-se desejar sem culpa
— sem o controle moral do superego.
7.
Considerações finais
A
perda de investimento libidinal do ego, seja no trabalho de fiscal de caixa ou
na prática psicológica, expressa um impasse entre o desejo inconsciente e a
censura do superego. O sujeito, diante da insatisfação e da culpa, retira sua
energia do mundo e adentra um estado de esvaziamento psíquico. Tal condição,
contudo, não representa o fim do desejo, mas um momento de transição
simbólica, em que o inconsciente sinaliza a necessidade de reorientar a
libido para novos objetos capazes de sustentar o prazer e a autenticidade do
sujeito.
A
escuta analítica, nesse contexto, deve favorecer a reconciliação entre o ego
e o desejo, libertando o sujeito da servidão moral do superego e
possibilitando o reinvestimento libidinal em experiências que restituam sentido
e vitalidade à existência.
Referências
- FREUD, S. (1914/1996). Introdução ao
narcisismo. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
- FREUD, S. (1917/1996). Luto e melancolia.
In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago.
- FREUD, S. (1923/1996). O ego e o id.
In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago.
- LACAN, J. (1953-1954/1986). O seminário,
livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- LACAN, J. (1960/1998). Subversão do
sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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