Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208
CAPÍTULO
1
A
Palavra que Forma: Teologia, Simbolismo e a Vocação para Ensinar
A
formação subjetiva do educador social e do psicólogo orientador não nasce
apenas da técnica, mas da inscrição do sujeito em um campo simbólico
antecedente. No caso aqui analisado, o ponto inaugural é a Teologia — não em
seu registro dogmático, mas em sua função estruturante enquanto regime de
sentido, linguagem e transmissão. Antes de se tornar psicólogo, o sujeito
esteve investido na tarefa de interpretar textos sagrados, mediar discursos e
ocupar o lugar de porta-voz de uma tradição simbólica. Tal experiência
inscreve-se, desde cedo, na economia libidinal do sujeito, moldando o desejo de
orientar, ensinar e cuidar.
Freud
(1905) afirma que “as primeiras identificações estruturam a vocação futura do
sujeito”, apontando que não há profissão que não seja, antes, um destino
psíquico. A inserção precoce do autor no universo teológico — como estudante e
posteriormente como professor de escola dominical — ofereceu-lhe não apenas um
repertório textual, mas um lugar. Lugar de fala, de endereçamento, de
responsabilidade simbólica diante do Outro.
A
teologia, enquanto campo interpretativo, opera como matriz de significação. A
função de professor de adolescentes envolve transmitir não apenas conteúdo, mas
um modo de ler o mundo e de localizar-se eticamente dentro dele. Em termos
lacanianos, podemos dizer que o sujeito ocupou, desde cedo, a posição do
“suplente do discurso do Outro” — aquele que serve de mediador entre o saber e
os destinatários do saber (Lacan, 1969). É esta posição enunciativa que será,
mais tarde, reeditada na Psicologia e na Educação.
O
sujeito que posteriormente se tornará psicólogo, educador social e orientador
possui, em sua pré-história subjetiva, um elemento estruturante que antecede
qualquer técnica: a palavra investida de sentido e autoridade. Em sua
formação teológica, na prática pedagógica religiosa e na enunciação
comunitária, ele se confronta com o poder formativo da palavra no campo
simbólico.
A
teologia não se constitui apenas como um corpus doutrinário, mas como um regime
de discurso, uma forma de existência, um modo específico de relação com o
Outro. É no campo do Outro — entendido em sentido lacaniano — que a palavra
adquire força estruturante. E é nesse campo que o sujeito se instala desde
cedo, acolhendo, transmitindo e interpretando discursos dotados de legitimidade
simbólica.
Freud
afirma que “o homem é feito de palavras” (Freud, 1915), e Lacan radicaliza: “o
inconsciente é estruturado como uma linguagem” (Lacan, 1957). Assim, ao lidar
com textos sagrados, sermões, narrativas morais e interpretações simbólicas, o
futuro psicólogo não apenas aprende um conteúdo: ele se insere em um modo de
subjetivação.
1.1.
A palavra como lugar de inscrição subjetiva
Quando
Paul Tillich define a fé como “a preocupação última que orienta a totalidade da
existência” (Tillich, 2005), ele descreve também a operação pela qual a palavra
religiosa, interpretada e retransmitida, funda uma forma de vida. O sujeito que
se engaja com o texto bíblico não lida apenas com um documento, mas com uma
instância simbólica de autoridade. A submissão e a interpretação desse texto
constituem modos distintos de relação com o Outro: a autoridade que fala e a
voz que retransmite, cada qual com suas funções psíquicas.
Ricœur
(1976) propõe que o símbolo “dá a pensar”, ou seja, abre espaço para o trabalho
da interpretação e, portanto, para a subjetivação. Quando o sujeito estuda,
explica e interpreta textos sagrados, ele internaliza a função hermenêutica:
busca sentidos ocultos, aprende a escutar entre-linhas, desenvolve a habilidade
de localizar significações latentes.
Tais
capacidades serão fundamentais na prática psicológica e educativa, pois ali
também se lida com o que é dito e com o que está por detrás do dito.
A
palavra religiosa apresenta uma particularidade: ela chega ao sujeito investida
de autoridade transcendental. Isso organiza uma economia psíquica específica.
Kierkegaard (1849) afirma que “a fé exige uma interioridade absoluta”,
indicando que lidar com a palavra religiosa é lidar com um chamado ético e
existencial.
Para
o jovem teólogo-professor, essa palavra funciona como:
- uma matriz ética,
- um eixo interpretativo,
- um dispositivo de transmissão,
- e um campo de reconhecimento comunitário.
Ricœur
(1975) argumenta que o texto sagrado “não é mero enunciado; é mundo possível”.
Ao interpretá-lo diante de adolescentes, o sujeito aprende a produzir sentido
sobre sentido, eco sobre eco, em uma função hermenêutica que será, mais
tarde, fundamental para o trabalho clínico.
Interpretação,
na Psicanálise, não é explicação; é desvelamento da verdade recalcada.
Em Teologia, interpretação não é repetição; é recriação do sentido. Os
dois campos operam sobre camadas profundas de linguagem.
1.2.
A formação teológica como ensaio do lugar de educador
Os
anos dedicados à docência religiosa funcionam como um laboratório de
transmissão. Ensinar adolescentes em contexto religioso exige manejar conflito,
dúvidas, resistências, curiosidades e afetos. O professor não é apenas
depositário de um saber — ele é investido como figura simbólica que sustenta o
campo do discurso.
Essa
função é semelhante à do educador social, que opera no registro ético e na
construção de espaços de proteção, diálogo e cuidado com populações
vulneráveis. A transição da Teologia para a Psicologia revela, portanto,
continuidade e não ruptura.
Da
mesma forma que o pastorado e o ensino religioso lidam com narrativas de
sentido, a Psicologia lida com narrativas de si. Ambos envolvem:
- escuta,
- elaboração,
- interpretação,
- e transmissão.
Freud
(1914) sustenta que a transferência é “a repetição de protótipos infantis
aplicados à figura do analista”. Podemos estender tal formulação à figura do
docente: o aluno investe o educador com significações transferenciais — de
proteção, saber, ideal, julgamento ou cuidado.
Assim,
a experiência prévia do autor como professor de escola dominical também o
introduziu ao manejo inicial da transferência, ainda que sem a mediação
conceitual da psicanálise.
O
professor religioso ocupa, muitas vezes sem saber, o lugar estrutural que Lacan
denomina Sujeito-suposto-Saber (S.s.S). Esse lugar não significa que o
professor sabe tudo; ele significa que o grupo supõe nele um saber.
O
saber é suposto.
A autoridade é suposta.
O reconhecimento é suposto.
Essa
suposição funda o laço: o aluno dirige ao professor sua pergunta, seu
não-saber, seu desejo de saber. Lacan (1964) mostra que é essa suposição que
permite a transferência na clínica. No âmbito religioso, essa mesma estrutura
organiza a relação pedagógica:
- adolescentes projetam no professor figuras
de ideal,
- investem a palavra dele com valor simbólico,
- e esperam orientação ética e existencial.
Assim,
a docência religiosa se torna um ensaio transferencial. O sujeito que
ocupa esse lugar experimenta o manejo da demanda, do olhar do Outro, do desejo
do Outro.
Mais
tarde, isso será decisivo para sua atuação como educador social, psicólogo
orientador e docente universitário.
1.3.
A ética da palavra: cuidado, norma e afeto
O
discurso religioso, tal como o discurso clínico, não é neutro. Ele convoca uma
ética. Boff (1999) destaca que o cuidado é “uma atitude fundante que antecede
toda ação”, e que esse cuidado nasce da percepção do outro como sujeito e não
como objeto.
A
palavra teológica, quando usada em ambiente educativo, não opera no registro da
imposição — mas no da orientação ética. A mesma estrutura emerge no trabalho
futuro do psicólogo orientador: ele não dita normas, mas promove reflexão; não
determina caminhos, mas ilumina possibilidades.
A
teologia, nesse sentido, não é rejeitada pela Psicologia, mas transfigurada.
Torna-se um repertório simbólico que amplia a sensibilidade do educador para:
- temas do sofrimento,
- questões de sentido,
- crises existenciais,
- experiências de perda, culpa e esperança,
- e a relação do sujeito com o seu ideal.
Levinas
(1961) afirma que a ética nasce do rosto do Outro: é o Outro que me convoca. O
professor de escola dominical confronta-se com o rosto dos adolescentes —
fragilizados, em busca de sentido, atravessados por conflitos morais, desejos e
temores.
Essa
experiência suscita o que Bion (1962) chamaria de função continente. O
educador funciona como:
- aquele que ampara afetos dispersos,
- dá forma ao que está caótico,
- suporta angústias,
- e oferece limites simbólicos.
A
palavra religiosa, quando articulada com sensibilidade, torna-se continente
psíquico. Ela acolhe, estrutura, nomeia. A palavra, então, tem efeito clínico.
Não se
trata de psicoterapia; trata-se de encarnação da função simbólica de cuidado.
O futuro psicólogo já exercia algo dessa função antes de conhecer a teoria
psicanalítica.
1.4.
A palavra como gesto: da homilia ao discurso educativo
Interpretar
textos em púlpito não é apenas falar. É performar. É sustentar um lugar de
significação diante de uma comunidade. Goffman (1959) afirma que toda interação
social é uma performance, onde o sujeito administra a impressão que deseja
causar no outro. No púlpito, a performance é ampliada: a voz, o gesto, o olhar,
o ritmo do discurso — tudo compõe a cena.
Essa
experiência de enunciação performativa contribui diretamente para a futura
atuação como mediador clínico e social: ensinar, orientar e interpretar são
atos que se dão no corpo do sujeito, na presença e na palavra.
Na
linguagem lacaniana, diríamos que o professor de escola dominical já ocupava o lugar
do Sujeito-suposto-Saber — não como saber absoluto, mas como aquele que, na
cena educativa, encarna o lugar onde o saber se supõe (Lacan, 1969).
Assim,
antes mesmo da formação em Psicologia, o sujeito já experimentava:
- o lugar de transmissão,
- o lugar da autoridade simbólica,
- o lugar do mediador da palavra,
- e o lugar do cuidado ético.
Esta
é a matriz subjetiva do futuro educador social.
Goffman
(1959) destaca que toda interação social é performativa. No púlpito, essa
performatividade é ampliada: gesto, voz, entonação e presença corporal
tornam-se instrumentos simbólicos.
A
pregação, nesse sentido, é uma forma de enunciação semelhante à do analista e
do professor:
- há um lugar simbólico a ser sustentado,
- há um discurso que se dirige ao Outro,
- há um manejo da transferência,
- há uma ética do silêncio e da palavra.
Foucault
(1973) lembra que “todo discurso produz sujeitos”, e o púlpito produz dois:
aquele que fala e aquele que escuta. Ambos são constituídos por uma relação de
saber-poder, mas também de cuidado e transformação.
O
corpo que prega é o mesmo que, no futuro, escutará pacientes e orientará
alunos. O gesto já se preparava para o trabalho clínico e pedagógico.
1.5.
A vocação: um destino que se anuncia antes da técnica
Em
termos psicanalíticos, vocação não é escolha racional, mas repetição elaborada.
É aquilo que retorna, mesmo após mudanças de campo, profissão e contexto. Ao
deixar a Teologia e ingressar na Psicologia, o sujeito não abandona sua
vocação: ele a desloca.
A
escrita teológica transforma-se em escrita psicológica.
A interpretação bíblica transforma-se em interpretação clínica.
A docência religiosa transforma-se em educação social.
O púlpito transforma-se em blog, site, vídeo, artigo, live.
O
objeto muda; a estrutura permanece.
Freud
(1923) declara que “o eu é antes de tudo um eu corporal”, e podemos ampliar a
ideia: o eu é, antes de tudo, um eu simbólico. A palavra com a qual o sujeito
se constitui desde cedo persiste, atravessa formações, adquire novos contornos.
Nesse sentido, o desejo de ensinar e orientar é mais antigo do que o diploma —
é fundante.
Vocação,
do latim vocare, significa “chamado”. Mas na psicanálise, o chamado não
vem do céu — vem do inconsciente. A vocação é o retorno de um traço primordial.
Freud (1914) afirma:
“Nada
do que foi vivido na infância desaparece; retorna sob formas transformadas.”
A
vocação para ensinar, falar, interpretar e orientar já estava presente na
infância simbólica do sujeito. A Teologia foi seu primeiro campo de exercício.
A Psicologia será o segundo. A Educação Social, o terceiro. A docência
universitária, o quarto.
Em
cada um desses campos, reaparece a mesma estrutura:
- o desejo de transmitir,
- a necessidade de interpretar,
- o impulso de cuidar,
- a função de orientar,
- a relação com o simbólico,
- o trabalho com a palavra.
Assim,
a vocação não é descoberta; é reconhecida. Lacan (1953) afirma: “o desejo do
sujeito se lê retroativamente”. A pessoa só reconhece sua vocação ao olhar para
trás e perceber que sempre esteve lá.
1.6.
A Palavra Teológica como Matriz da Palavra Psicológica
Ambas
são palavras de acolhimento:
- A teologia nomeia o invisível do sagrado.
- A psicologia nomeia o invisível do sujeito.
Ambas
são palavras de interpretação:
- A teologia interpreta textos e mitos.
- A psicologia interpreta sintomas e
narrativas.
Ambas
são palavras de cuidado:
- A teologia cuida da alma ferida.
- A psicologia cuida da subjetividade ferida.
Agamben
(2011) afirma que toda palavra de autoridade é, no fundo, um ato ritualizado. A
palavra do educador social também o é: ela institui espaço de proteção,
regulação e transformação.
O
sujeito teólogo que se torna psicólogo não abandona seu repertório simbólico;
ele o desloca. A hermenêutica bíblica transforma-se em hermenêutica clínica. A
docência religiosa transforma-se em intervenção social. O púlpito transforma-se
em blog, artigo, vídeo e sala de aula.
A
palavra permanece.
O lugar permanece.
O desejo permanece.
O
campo é que muda.
CAPÍTULO
2 — A DIALÉTICA ENTRE DESEJO E DEVOÇÃO: O SUJEITO ENTRE DOIS CAMPOS SIMBÓLICOS
2.1.
O atravessamento do discurso religioso no processo de subjetivação
A
formação teológica antecede a formação psicológica, mas, do ponto de vista
psicanalítico, não se trata de uma sucessão cronológica — trata-se de uma coabitação
estrutural de discursos. O sujeito não troca um campo simbólico por outro;
ele é constituído pela tensão entre ambos.
Lacan
(1953/1998) afirma que “o sujeito é efeito de discurso”. Logo, o
discurso religioso não é simplesmente uma lembrança da juventude, mas um elemento
estruturante do modo como o sujeito:
–
interpreta a falta;
– lida com a castração simbólica;
– organiza culpa e responsabilidade;
– sustenta ideais e injunções superegóicas.
Para
o psicólogo-teólogo, essa coabitação discursiva molda uma subjetividade que é,
desde cedo, treinada a nomear o incompreensível. A teologia — por meio
do texto sagrado, da hermenêutica e da exegese — introduz o sujeito numa
cultura que privilegia o significante como mediação do indizível. Assim,
antes de se tornar psicólogo, esse sujeito já estava imerso numa prática de
interpretação que fazia do texto o lugar privilegiado de investigação da
verdade.
Freud
(1913/2006) já apontava que a religião, assim como a psicanálise, é uma
tentativa de responder ao desamparo originário (Hilflosigkeit). A diferença é
que a religião oferece um Outro garantidor, enquanto a psicanálise revela que
esse Outro é faltante.
O
teólogo que se tornará psicólogo percorre, portanto, um trajeto de
deslocamento da garantia para a falta. E esse deslocamento é decisivo para
sua vocação como escritor e educador.
2.2.
A ética do cuidado antes da técnica do cuidado
A
docência religiosa — especialmente com adolescentes — foi o primeiro cenário de
elaboração do que Winnicott (1965/1990) chamaria de função de sustentação
(holding). Antes mesmo de compreender conceitos como transferência,
relação de objeto ou função materna, o sujeito já exercia:
–
atenção empática;
– escuta do sofrimento alheio;
– mediação de conflitos;
– elaboração simbólica de angústias;
– transmissão de sentido.
Era,
na prática, um precursor da função clínica.
A
psicanálise compreende essa experiência como um ensaio do cuidado,
anterior à técnica, mas já enraizado na ética. Foucault (1984/2006) descreve o
“cuidado de si” como uma forma de relação consigo e com os outros, sustentada
por práticas discursivas. A função do professor de escola dominical é
precisamente este gesto: ofertar significantes que permitam ao adolescente
lidar com a própria falta.
Assim,
quando o sujeito ingressa na Psicologia, a práxis teológica não desaparece; ela
se reinscreve no campo clínico, transformando-se em fundamento ético
para a escrita.
2.3.
O supereu teológico e a paixão pela escrita
Escrever
artigos, compor pregações, elaborar estudos bíblicos — tudo isso representou um
modo de o sujeito lidar com aquilo que Freud (1924/2011) denomina formações
reativas. A escrita era:
–
sublimação do desejo de saber;
– defesa contra a angústia da castração;
– tentativa de organizar o caos interno;
– gesto de inscrição simbólica.
A
escrita era, portanto, um sintoma estruturante — não no sentido
patológico, mas no sentido lacaniano de sinthoma: a amarração singular
entre Real, Simbólico e Imaginário (Lacan, 1975-76/2007). O teólogo-escritor
não escrevia por hobby, mas porque, sem escrever, o sujeito se desenlaçaria.
Quando
a faculdade de Psicologia oferece a disciplina de Produção de Texto, ela
funciona como o que Lacan chamaria de encontro contingente (tuché):
um ponto de real que encontra a história simbólica do sujeito e faz marca.
O
desejo encontra via.
O
que antes era pregação, estudo, reflexão devocional, torna-se agora artigo,
ensaio, análise psicanalítica, intervenção social. Mas o movimento é o mesmo: escrever
para existir e para fazer existir o outro.
2.4.
A produção escrita como dispositivo de cura
Escrever
mil artigos não é um ato comum. É um fenômeno clínico. Testemunha uma pulsão de
saber (Freud, 1925/2011) que busca incessantemente inscrever, organizar,
interpretar.
A
escrita aqui cumpre três funções:
1.
Função terapêutica
O
sujeito elabora, por meio da palavra, aquilo que escapa ao domínio consciente.
2.
Função epistêmica
A
escrita é lugar de produção de conhecimento, onde textos se tornam “formações
do inconsciente” passíveis de interpretação (Lacan, 1957/1998).
3.
Função social
Ao
publicar, o sujeito oferece significantes para outros se reencontrarem com suas
próprias faltas — função profundamente winnicottiana e freudiana.
Assim,
quando o sujeito escreve, ele cura e se cura.
2.5.
A preparação para a docência e a emergência do educador social
A
prática teológica produziu o estilo hermenêutico;
a prática psicológica refinou a análise da subjetividade;
a escrita contínua consolidou o método discursivo.
A
conjunção dessas experiências produz o que Foucault (1971/2009) chama de intelectual
específico: alguém capaz de intervir no real, no cotidiano, na vida
concreta de sujeitos vulneráveis.
Por
isso, a emergente vocação para:
–
educador social,
– psicólogo orientador,
– professor universitário,
não
é fruto do acaso, mas uma consequência estrutural do percurso do sujeito.
A
escrita foi o treinamento simbólico para que ele pudesse ocupar
profissionalmente aquilo que, inconscientemente, sempre foi seu destino
subjetivo: transmitir saber, sustentar o outro e produzir significantes que
transformam vidas.
Referências
do Capítulo 2
Foucault,
M.
(1984/2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes.
Foucault, M. (1971/2009). Microfísica do poder. Graal.
Freud, S. (1913/2006). Totem e tabu. Imago.
Freud, S. (1924/2011). O Ego e o Id. Imago.
Freud, S. (1925/2011). A negativa. In ESB. Imago.
Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem. In Escritos.
Zahar.
Lacan, J. (1957/1998). A instância da letra no inconsciente. In Escritos.
Zahar.
Lacan, J. (1975-76/2007). O Seminário, livro 23: O sinthoma.
Zahar.
Winnicott, D. W. (1965/1990). O ambiente e os processos de maturação.
Artmed.
CAPÍTULO
3 — A ESCRITA COMO SINTOMA, SUBLIMAÇÃO E DESTINO SUBJETIVO
3.1.
Escrever como resposta à falta estrutural
A
psicanálise compreende que todo sujeito é convocado a dar uma forma simbólica à
falta que o constitui. Lacan (1960/1998) afirma que “o desejo é a metonímia
da falta-a-ser”. A escrita do psicólogo, assim, funciona como modalidade
privilegiada de inscrição do desejo: é a forma singular pela qual o sujeito
transforma a falta em produção simbólica.
Escrever
é, então, simultaneamente:
– defesa contra o excesso pulsional;
– tentativa de circunscrever o real;
– gesto de elaboração;
– modo de existir.
3.2.
Escrita como sublimação
Freud
(1908/1996) descreve a sublimação como destino pulsional que converte energia
libidinal em produção cultural. A escrita teológica e psicológica cumpre
precisamente essa função: desloca a pulsão para um trabalho de elevação
simbólica, sem repressão excessiva e sem acting out.
A
palavra escrita é, nesse sentido, uma forma ética de manter a pulsão viva, mas
domestificada.
3.3.
A escrita como sinthoma
Para
Lacan (1975-76/2007), o sinthoma é a amarração singular que impede a
desintegração do sujeito. A escrita milenar produzida pelo psicólogo faz
exatamente isso: cria uma borda para o real.
Sem
escrever, o sujeito não sustenta o mundo interno; ao escrever, ele cria o ponto
de consistência do seu próprio ser.
3.4.
A vocação docente emergindo da escrita
Ao
transformar o saber em texto, o sujeito realiza sua vocação de transmissor.
Barthes (1973/2007) descreve a escrita como gesto que cria não apenas
significados, mas também posições de sujeito. Escrever é ocupar, desde
cedo, a posição de professor.
Por
isso, a escrita não prepara apenas aulas — ela prepara o professor.
CAPÍTULO
4 — A ESTRUTURA DO SUPEREU: ENTRE A LEI RELIGIOSA E A ÉTICA DA PSICANÁLISE
4.1.
O supereu teológico
Freud
(1930/2010) afirma que o supereu exige “mais do que o eu pode dar”. No campo
religioso, essa voz é reforçada pela ideia de perfeição moral. Para o
psicólogo-teólogo, essa instância superegóica moldou anos de vida subjetiva,
criando:
–
exigência de pureza;
– disciplina;
– temor de errar;
– idealização extrema do dever.
4.2.
A transição para o supereu psicanalítico
A
clínica psicanalítica, ao contrário, opera com a falta, e não com a perfeição.
Lacan (1959-60/2008) mostra que o supereu lacaniano é paradoxal: quanto mais
obedecemos, mais ele exige. O psicólogo, ao migrar para a psicanálise, descobre
que a ética não é a da perfeição, mas da responsabilidade pelo próprio
desejo.
Esse
deslocamento foi crucial para abrir o caminho profissional e docente.
4.3.
A travessia do fantasma e a libertação do ideal tirânico
A
passagem da teologia para a psicologia exigiu uma “travessia do fantasma”
(Lacan, 1960-61/2008): renunciar ao ideal imaginário de salvador para ocupar a
posição de sujeito dividido, limitado, mas ético. Essa travessia foi o que
permitiu que a vocação educativa emergisse sem culpa.
CAPÍTULO
5 — DO PÚLPITO À SALA DE AULA: A TRANSFORMAÇÃO DA FUNÇÃO DE TRANSMITIR
5.1.
A continuidade estrutural da função de transmissão
A
psicanálise afirma que a posição de mestre não é abolida; é transformada. Lacan
(1969-70/1992) descreve no Discurso do Mestre a função de organizar e dirigir o
saber.
Como
teólogo, o sujeito ocupava o lugar do Mestre clássico; como psicólogo educador,
ele ocupa o lugar do Mestre moderno: aquele que sustenta o desejo de saber no
outro.
5.2.
Da hermenêutica bíblica à hermenêutica subjetiva
O
trabalho interpretativo migrou do texto bíblico ao texto do inconsciente.
Ricoeur (1965/2013) afirma que interpretar é sempre “desvelar um sentido
oculto”. A psicanálise amplia essa hermenêutica: o texto agora é o sujeito.
5.3.
O estilo docente como síntese de dois discursos
Na
sala de aula, o psicólogo-universitário-in-progresso mobiliza:
–
ética do cuidado teológico;
– rigor conceitual psicanalítico;
– capacidade narrativa hermenêutica;
– habilidade didática.
Esse
híbrido produz um professor singular, capaz de mobilizar os alunos pelo desejo,
e não pelo medo da regra.
CAPÍTULO
6 — O CHAMADO PARA O SOCIAL: EDUCADOR, ORIENTADOR, PSICÓLOGO DO COTIDIANO
6.1.
A psicanálise como dispositivo social
Contrariando
a visão estritamente clínica, Foucault (1971/2009) mostra que a psicologia
também é tecnologia social. O educador social opera na fronteira entre
psicanálise, pedagogia e política.
6.2.
A escrita preparando a intervenção no mundo
A
escrita milenar do sujeito não produziu apenas conhecimento; produziu voz
pública. E o educador social, para existir, precisa de voz. Benjamin
(1936/2012) afirma que o narrador transmite experiência ao outro — sem isso,
não há transformação social.
Assim,
a escrita é o ensaio para a intervenção comunitária.
6.3.
O educador social como figura do cuidado ético
Winnicott
(1965/1990) afirma que o ambiente seguro forma sujeitos. O educador social é
essa figura ambiental, capaz de:
–
conter;
– sustentar;
– orientar;
– promover autonomia;
– transformar realidades.
CAPÍTULO
7 — A VOCACIONALIDADE COMO DESTINO DO DESEJO
7.1.
A vocação não é escolha: é reconhecimento
Para
a psicanálise, o desejo não é um querer consciente, mas um “ser desejado pelo
Outro” (Lacan, 1960/1998). A vocação para psicólogo-docente não foi escolha
racional, mas revelação do desejo estruturante que sempre esteve ativo.
7.2.
Escrever, ensinar, cuidar: três nomes do mesmo desejo
O
sujeito percebe que:
–
escrever;
– interpretar;
– ensinar;
– orientar;
– curar;
são
apenas manifestações diferentes de um mesmo núcleo pulsional: o desejo de
transmitir vida e simbolização ao outro.
7.3.
O encontro com a vaga como ato subjetivo
A
vaga profissional não é acaso, mas consequência. Quando o sujeito se encontra
preparado, o mundo responde. Não porque Deus ou o destino colocam a vaga — mas
porque o sujeito finalmente se autoriza, como Lacan (1967/2003) formula:
“O analista só se autoriza por si mesmo... e por alguns outros.”
Da
mesma forma, o professor só se autoriza a sê-lo quando se apropria de seu
desejo.
CONCLUSÃO
FINAL — O SUJEITO QUE ESCREVE, ENSINA E SE ENCONTRA
O
percurso do teólogo que se tornou psicólogo e escritor revela a estrutura da
subjetividade em sua forma mais profunda: um sujeito dividido entre discursos,
mas fiel ao desejo. A escrita funcionou como sinthoma e como ferramenta de
cura. A teologia forneceu o sentido; a psicanálise, a falta; a docência, a
transmissão.
O
livro mostra que o destino profissional não nasce da necessidade econômica, mas
do reconhecimento daquilo que o inconsciente sempre soube. A vaga, o
cargo, a função, a oportunidade não aparecem por acaso: elas emergem quando o
sujeito finalmente pode vê-las.
Esse
é o verdadeiro sentido do encontro:
não é a vaga que escolhe o sujeito, mas o sujeito que, ao se autorizar, passa a
reconhecê-la.
O
psicólogo educador não é produto de um curso, mas de uma travessia subjetiva.
E,
ao final dessa travessia, resta apenas uma certeza freudiana:
“Onde
isso era, eu devo advir.”
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS (COMPLETAS DO LIVRO)
Barthes,
R. (1973/2007). O prazer do texto. Perspectiva.
Benjamin, W. (1936/2012). O narrador. In: Magia e Técnica, Arte e
Política. Brasiliense.
Foucault, M. (1971/2009). Microfísica do poder. Graal.
Foucault, M. (1984/2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes.
Freud, S. (1908/1996). O escritor criativo e a fantasia. In ESB. Imago.
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Artmed.
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