Pular para o conteúdo principal

A Compreensão de Si Dentro do Sistema: O Supermercado

 O despertar do fiscal psicólogo diante da liderança adormecida e do comportamento sabotador”


Resumo

O presente artigo analisa, sob o enfoque da psicologia organizacional e da psicanálise aplicada ao trabalho, a experiência de um fiscal de caixa com formação em psicologia que atua em um ambiente caracterizado por liderança com fisionomia consciente e particularidades de uma pessoa inconsciente, conflitos interpessoais e comportamentos sabotadores passivo-agressivos.

A vida organizacional é um campo simbólico onde se expressam tanto os aspectos conscientes das relações de trabalho quanto os conteúdos inconscientes dos sujeitos. O caso do fiscal psicólogo ilustra o entrelaçamento entre o papel técnico e o papel emocional do trabalhador dentro de um sistema que, ao negar conflitos, produz sobrecarga, desmotivação e sofrimento psíquico.

Quando a liderança se mostra adormecida — ou seja, consciente ou inconsciente das disfunções, mas paralisada pela insegurança institucional —, ela transfere o peso da responsabilidade emocional aos membros mais lúcidos e sensíveis do grupo. O fiscal psicólogo, ao perceber esse fenômeno, é convidado a sair da posição de “salvador” e compreender-se como “espelho”, isto é, como aquele que reflete a sombra coletiva, sem a pretensão de curá-la.

O estudo propõe compreender como o fiscal psicólogo, inicialmente identificado com o papel inconsciente de “salvador” do grupo, atravessa um processo de conscientização e amadurecimento emocional até compreender que curar não é salvar o outro, mas compreender o sentido da própria presença no sistema. O texto integra conceitos de Freud, Bion e Jung para interpretar os fenômenos de transferência, resistência e individuação.

Palavras-chave: Psicologia organizacional; Psicanálise; Liderança adormecida; Comportamento sabotador; Autoconhecimento; Individuação.


1. Introdução

A vida organizacional é um campo simbólico onde se expressam tanto os aspectos conscientes das relações de trabalho quanto os conteúdos inconscientes dos sujeitos.
O caso do fiscal psicólogo ilustra o entrelaçamento entre o papel técnico e o papel emocional do trabalhador dentro de um sistema que, ao negar os conflitos, produz sobrecarga, desmotivação e sofrimento psíquico.

Como aponta Chiavenato (2014), a liderança é o eixo que dá sentido e equilíbrio ao grupo; quando ela se omite, transfere para os colaboradores o peso da própria desorganização. Assim, o fiscal psicólogo acaba se tornando o depositário das tensões do coletivo.


2. Liderança adormecida e o deslocamento da responsabilidade emocional

A liderança adormecida é aquela que evita o confronto, ignora os conflitos e tenta manter a “paz” aparente em detrimento da saúde emocional da equipe.
Segundo Bion (1961), o grupo que carece de uma liderança viva tende a regredir emocionalmente, ativando comportamentos infantis e dependentes.

Nesse cenário, o fiscal psicólogo assume inconscientemente a função de mediador e “cuidador emocional”, tentando equilibrar o grupo. Contudo, essa posição o leva à exaustão, pois o sistema inconscientemente o transforma em um bode expiatório das tensões reprimidas.


3. O comportamento sabotador passivo-agressivo e o sintoma do sistema

O comportamento sabotador de uma fiscal do sexo feminino, caracterizado pela resistência às tarefas, manipulação relacional e divisão da equipe, expressa o sintoma de um sistema adoecido. Freud (1921) observa que os grupos ativam mecanismos de defesa coletivos, como a projeção e a negação, e tendem a eleger um “alvo” onde depositam suas pulsões reprimidas.

Assim, a fiscal sabotadora encarna o aspecto inconsciente que o grupo recusa ver: o desejo de não cooperar, de resistir à autoridade e de desafiar o senso de dever. O fiscal psicólogo, por sua vez, representa o princípio da consciência que tenta restabelecer o equilíbrio. Esse confronto é, portanto, simbólico.


4. A contratransferência e o despertar da consciência

Ao lidar com a sabotagem e a omissão da liderança, o fiscal psicólogo sente raiva, frustração e injustiça — afetos típicos da contratransferência.
Esses sentimentos revelam identificações inconscientes com o sofrimento coletivo. Ele deseja “curar o grupo”, mas descobre que o desejo de salvar o outro é também o desejo de ser reconhecido e aceito.

Como lembra Jung (1954), o inconsciente nos ensina por meio de espelhos simbólicos. O comportamento da colega sabotadora reflete nele sua própria luta interna entre o desejo de servir e o desejo de libertar-se. O conflito externo revela o conflito interno.


5. A expulsão simbólica e a finalização da Gestalt

A liderança, ao não agir, realiza uma expulsão simbólica. Ela mantém o fiscal psicólogo no desconforto, até que ele perceba que não pertence mais a esse ciclo.
Esse momento marca a finalização da Gestalt — o encerramento de um ciclo de aprendizado e amadurecimento.

Segundo Freud (1920), quando o sujeito repete um padrão de sofrimento, ele busca elaborar algo não resolvido. O fiscal psicólogo compreende que mudar de supermercado seria apenas repetir o sintoma em outro cenário. O verdadeiro movimento é transcender o papel de fiscal e dar lugar ao psicólogo que agora desperta.


6. A promessa infantil e o símbolo da cura

Durante uma crise de bronquite na infância, enquanto fazia inalação no hospital Dr. Mario Gatti aos 08 anos de idade, o menino que viria a ser psicólogo fez uma promessa: “Se eu sarar, vou curar as pessoas.”

Essa promessa, originada em um momento de dor e vulnerabilidade, tornou-se o núcleo simbólico de sua vocação. Na vida adulta, ele encenou essa promessa no ambiente organizacional, tentando “curar” o sistema e aliviar o sofrimento dos colegas.

Contudo, a psicanálise ensina que a promessa infantil contém tanto o amor quanto o excesso de responsabilidade. O sujeito adulto precisa reconhecer o limite do “curar o outro” e voltar-se para a própria individuação — curar-se de sua necessidade de salvar.


7. A compreensão de si dentro do sistema

Ao compreender seu papel, o fiscal psicólogo percebe que não é o salvador, mas o espelho. Ele entende que sua função não era transformar a empresa/supermercado, mas transformar-se através da empresa.

A liderança omissa com traços consciente e aspectos inconscientes, a colega sabotadora e o grupo dividido foram mestres simbólicos que revelaram sua missão inconsciente e o conduziram ao autoconhecimento. Como ensina Morin (2005), a complexidade humana se revela quando o sujeito se reconhece como parte e produto do sistema.

A compreensão de si dentro do sistema é, portanto, o início da libertação. É o momento em que o sujeito diz: “Eu não sou o salvador; eu sou o espelho onde o outro pode se ver, se quiser.”


8. Conclusão

Compreender-se dentro de um sistema organizacional não implica mudá-lo, mas reconhecer seu papel simbólico dentro dele. O fiscal psicólogo compreende que aquele ambiente serviu como espelho de sua própria individuação. Ele encerra o ciclo com consciência e serenidade, reconhecendo que a cura é compreender o próprio sentido da presença. A saída física do supermercado é apenas a expressão de um movimento interior que já aconteceu: o fim da repetição e o início da vocação real.


Referências Bibliográficas

  • Bion, W. R. (1961). Experiências em grupos. Rio de Janeiro: Imago.
  • Chiavenato, I. (2014). Gestão de pessoas: o novo papel dos recursos humanos nas organizações. Rio de Janeiro: Elsevier.
  • Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Obras completas, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.
  • Freud, S. (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras completas, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.
  • Jung, C. G. (1954). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes.
  • Jung, C. G. (1960). A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes.
  • Morin, E. (2005). O método 5: A humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina.
  • Schein, E. H. (2010). Organizational Culture and Leadership. San Francisco: Jossey-Bass.

 

Ano 2025. Autor [Ayrton Junior Psicólogo]

 

Comentários

Postagens mais visitadas

Turnover E Competências Socioemocional

  Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para um excelente tópico. O supermercado enfrenta uma elevada taxa de turnover entre os operadores de caixa. Observa-se que grande parte dos colaboradores recém-contratados não permanece até o final do período de experiência, e aqueles que o ultrapassam tendem a se desligar da função em um curto intervalo de tempo. Embora existam motivos pessoais envolvidos, é perceptível que muitos desses operadores demonstram carência de competências socioemocionais essenciais para o bom desempenho da função. Entre as habilidades deficitárias, destacam-se a baixa adaptabilidade, a limitada tolerância à frustração, dificuldades na regulação emocional e no gerenciamento do estresse. Essas competências são fundamentais para lidar com as pressões diárias do cargo, que exige atenção constante, contato direto com o público, capacidade de resolver conflitos e resiliência diante de situações ad...

Psicólogo E A Incerteza Do Curso Profissionalizante De Serviços

  Ano 2024. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para um excelente tópico. Um psicólogo gostaria de se inscrever num curso de treinamento de serviço para profissional da saúde na Unicamp que será realizado no ano de 2025, más não sabe qual curso escolher pois todos os cursos são destinados para serem aplicados e praticados em alguma instituição. O psicólogo não consegue empregar se em nenhuma instituição que tenha o cargo de psicólogo. Mediante está situação não consegue escolher algum curso que possa ser utilizado. Na psicanálise, podemos entender essa dificuldade do psicólogo como uma luta interna entre seu desejo e as barreiras que ele mesmo impõe para se proteger de angústias e medos, muitas vezes de maneira inconsciente. Essa situação envolve mecanismos de defesa que o ego usa para lidar com os conflitos entre seus desejos (representados pelo id) e as exigências e restrições (representadas pelo superego). Vamos anali...

Angústia Da Ausência De Clareza De Informações

  Ano 2024. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para um excelente tópico. Um sujeito que trabalha como fiscal de caixa em um supermercado e é psicólogo está angustiado porque não consegue perceber um caminho para ser contratado como psicólogo em alguma instituição e compreende que a ausência de Clareza gera angústia que está lhe fazendo mal. Na psicanálise, podemos entender essa situação analisando os três sistemas psíquicos: id, ego e superego, bem como os conceitos de angústia e desejo. O conflito interno: O id representa os desejos e impulsos mais profundos. Nesse caso, o desejo do sujeito é trabalhar como psicólogo, porque isso se alinha ao que ele valoriza e ao prazer de ajudar os outros. O superego é a parte crítica, que internaliza normas e regras sociais. Ele pode estar julgando o sujeito por não ter "chegado lá" ainda, criando sentimentos de culpa e cobrança. O ego, que é o mediador entre o id e o ...

Psicólogo Trabalha Como Telemarketing

  Ano 2023. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do para um excelente tópico. Na abordagem psicanalítica, as motivações inconscientes são pensamentos, desejos, sentimentos ou impulsos que influenciam nosso comportamento, mas que não estamos cientes deles. Quando se trata de compreender por que um psicólogo poderia aceitar um trabalho como telemarketing em telecomunicações, algumas motivações inconscientes possíveis podem incluir: Desejo e medo de controlar o livre arbítrio do cliente: O livre-arbítrio refere-se à capacidade que uma pessoa tem de fazer escolhas e tomar decisões por si mesma, sem ser determinada por fatores externos ou por circunstâncias predefinidas. Como psicólogo, reconhecemos que cada indivíduo tem sua própria liberdade de escolha e que suas ações são influenciadas por uma combinação de fatores internos e externos. O psicólogo não busca controlar ou ditar as escolhas do cliente, mas sim ajudá-lo a explorar suas...

Dinâmica De Poder Nas Instituições – Psicologia Organizacional

  Ano 2023. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do para um excelente tópico. A dinâmica de poder em uma organização refere-se à distribuição e ao exercício do poder entre os membros e diferentes níveis hierárquicos dentro da empresa. O poder é uma influência que permite que um indivíduo ou grupo afete o comportamento ou as decisões dos outros. Existem diferentes teorias e abordagens para entender a dinâmica de poder em uma organização. Vou apresentar alguns dos principais através da psicologia organizacional. Teoria das bases de poder: Essa teoria, proposta por French e Raven, identifica cinco bases de poder que uma pessoa pode ter na organização. São elas: Poder coercitivo: baseia-se no medo de punição ou consequências negativas. Poder de recompensa: baseia-se na capacidade de recompensar ou oferecer incentivos. Poder legítimo: baseia-se na autoridade formal concedida pela posição hierárquica. Poder de especialista: bas...

Entre - Lugar

  Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para um excelente tópico. O que é o entre - lugar que as vezes nos encontramos em algumas situações. Construa um texto citando como exemplo um indivíduo que está no entre lugar através da psicologia social para ser gravado no Ainda sou podcast pelo host psicólogo Ayrton Júnior adaptado na linguagem assertiva informativa e que movimentos o sujeito realizar para demover se do entre lugar para ocupar na realidade o lugar que lhe pertence por direito Abaixo está um texto adaptado para ser lido no seu podcast "Ainda Sou" , com linguagem assertiva e informativa, fundamentado na psicologia social , explicando o conceito de entre-lugar e como o sujeito pode sair dessa posição ambígua e retomar o seu lugar legítimo na realidade: 🎙️ AINDA SOU — por Ayrton Júnior Hoje, vamos falar sobre um conceito muito presente nas experiências humanas, mas pouco nomeado: o entre-...

Dinâmica Poder Instituições - Psicanálise

  Ano 2023. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para observar a dinâmica de poder na organização a qual trabalha. Claro! Vou explicar a dinâmica de poder em uma organização, utilizando conceitos da psicanálise, de forma que seja compreensível para o leitor. A dinâmica de poder em uma organização pode ser entendida como o modo como as relações de poder se estabelecem e são constituídas entre as pessoas que fazem parte dela. Na psicanálise, podemos analisar essa dinâmica a partir de dois conceitos importantes: o ego e o superego. O ego representa a parte da mente responsável pela tomada de decisões e pela interação com o mundo externo. Ele busca equilibrar as demandas do indivíduo e as exigências sociais. Nas organizações, o ego pode ser associado aos líderes, gerentes ou diretores, que exercem autoridade e têm poder de decisão sobre os demais membros da equipe. Já o superego está relacionado às normas, valores e regra...

Luto Pela Demissão

  Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para um excelente tópico. Vamos pensar juntos de forma bem didática, passo a passo, usando a psicologia organizacional para entender esse processo de desligamento emocional e o luto pela demissão. 1. O que é desligamento emocional? Na psicologia organizacional, desligar-se emocionalmente da empresa significa aceitar que aquele ciclo profissional acabou e começar a reconstruir sua identidade fora daquela função. É como terminar um relacionamento: mesmo que o contato físico tenha acabado (foi demitida), a mente e o coração ainda estão presos lá. 2. O que é o luto pela demissão? O luto organizacional é o processo emocional que uma pessoa passa quando perde o trabalho. Não é só tristeza: envolve choque, negação, raiva, tristeza, até chegar à aceitação. Como no luto por alguém que morreu, o cérebro precisa de tempo para entender e reorganizar a vida sem aquela rotina, stat...

Psicólogo E O Menor Infrator

  Ano 2023. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do para um excelente tópico. Quais as incitações inconscientes para um psicólogo aceitar a trabalhar numa clínica de reabilitação de menor infrator numa função inferior como educador social de menores infratores. A tendência de um indivíduo de se colocar em posições e papéis que geram conflitos, discussões e brigas pode ser explicada através de conceitos como o princípio do prazer, o princípio da realidade e os mecanismos de defesa. De acordo com Sigmund Freud, fundador da psicanálise, o princípio do prazer refere-se ao desejo humano de buscar prazer e evitar o sofrimento. No entanto, o princípio da realidade impõe limites a esse princípio do prazer, considerando as demandas e restrições do mundo externo. Quando uma pessoa busca consistentemente situações que envolvem conflitos, discussões e brigas, isso pode estar relacionado a padrões de comportamento aprendidos ao longo da vida,...

Desejo, Frustração e Narcisismos Nas Relações Virtuais

  Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208 O presente artigo chama a atenção do leitor para um excelente tópico. Um indivíduo está utilizando um aplicativo de relacionamento e se vê preso a uma dinâmica repetitiva: deseja mulheres que não o desejam e rejeita aquelas que demonstram interesse por ele. Essa experiência, embora comum, revela aspectos profundos da estrutura psíquica do sujeito, especialmente sob a ótica da psicanálise. O desejo do sujeito não está apenas direcionado às mulheres, mas àquilo que elas representam para ele. Ele projeta sobre as mulheres mais bonitas e jovens um ideal de beleza, juventude e valor social. Desejá-las é, para ele, uma forma de se aproximar do seu próprio ideal do eu — uma imagem idealizada de quem gostaria de ser. Assim, não se trata apenas de querer o outro, mas de desejar ser desejado por esse outro idealizado. Isso é o que Lacan chama de “desejo do desejo do Outro”. Ao desejar ser objeto do desejo dessas mulheres, o ...