Ano 2025. Autor [Ayrton Junior Psicólogo]
Uma
leitura psicanalítica e organizacional da transição de identidade do fiscal
psicólogo
Resumo
O
presente artigo analisa, sob a ótica da psicanálise aplicada ao trabalho
e da psicologia organizacional, o processo simbólico de transformação
vivido por um fiscal de caixa com formação em psicologia e teologia —
denominado aqui fiscal psicólogo.
O
estudo aborda os conflitos interpessoais com uma colega de comportamento
sabotador passivo-agressivo, a omissão da liderança e o consequente esgotamento
emocional que impulsionam o sujeito a reconhecer que seu ciclo profissional
chegou ao fim.
O
texto propõe uma leitura psicanalítica desse percurso, articulando conceitos de
Freud, Jung, Lacan, Winnicott e Frankl, e
revelando como a experiência dolorosa no ambiente de trabalho tornou-se um
campo de autoconhecimento, culminando na libertação da compulsão à repetição e
na reconciliação com o verdadeiro desejo: exercer a psicologia de forma plena e
consciente.
Palavras-chave:
psicanálise aplicada ao trabalho; comportamento passivo-agressivo; liderança
omissa; compulsão à repetição; individuação; vocação.
1.
Introdução
Toda
trajetória profissional é atravessada por dinâmicas conscientes e inconscientes
que revelam o modo como o sujeito se relaciona com o trabalho, o poder e o
desejo.
No caso do fiscal psicólogo, o ambiente de um supermercado torna-se um microcosmo
psíquico, onde se projetam as contradições entre a vocação de cuidar e a
função de fiscalizar.
A
convivência com uma fiscal do sexo feminino, cujo comportamento é
passivo-agressivo e autossabotador, ativa no sujeito um conflito entre o
desejo de salvar e o limite de suportar. Simultaneamente, a liderança
omissa reforça a sensação de abandono institucional, configurando o cenário
perfeito para o despertar da consciência.
Como
afirma Freud (1914), “o inconsciente retorna sempre, disfarçado na
repetição”. Assim, o fiscal psicólogo reconhece que não se trata apenas de
um conflito interpessoal, mas da repetição de um roteiro inconsciente: o de
tentar salvar o outro como forma de justificar sua própria permanência em um
lugar que já não o representa.
2.
O comportamento passivo-agressivo como resistência inconsciente
A fiscal
sabotadora manifesta um padrão passivo-agressivo típico das organizações
adoecidas: atua com aparente obediência, mas sabota silenciosamente as
normas e os colegas, criando sobrecarga emocional nos demais.
Esse
tipo de comportamento é descrito por Freud (1925) como uma forma de
resistência inconsciente à castração simbólica — o sujeito deseja o poder, mas
teme as consequências da responsabilidade. No ambiente de trabalho, essa
ambiguidade se traduz em fuga das tarefas, manipulação emocional e tentativas
de dividir a equipe.
Para Jung
(1959), a pessoa com esse perfil expressa o “complexo da sombra”: aspectos
reprimidos da personalidade que projetam nos outros aquilo que ela própria não
aceita em si. O grupo, ao não reconhecer essa sombra coletiva, passa a sofrer
dela — e o fiscal psicólogo torna-se o depositário desse mal-estar.
📘 “Tudo aquilo que nos
irrita nos outros pode nos levar à compreensão de nós mesmos.”
— Jung (1953, p. 45)
3.
A liderança adormecida e o poder do não agir
A
liderança omissa representa um fenômeno psicológico e institucional de
grande complexidade. Sua aparente neutralidade é, na verdade, uma forma de controle
pela inação. Ao não agir, a liderança transfere para os subordinados a
tarefa de resolver os conflitos emocionais do grupo, mantendo-se distante e
protegida de eventuais responsabilizações.
Segundo
Lewin (1947), a ausência de direção clara leva os grupos a buscarem
inconscientemente um equilíbrio disfuncional, onde o conflito se torna
mecanismo de estabilidade. A liderança que “lava as mãos” alimenta, sem
perceber, a pulsão de morte organizacional, pois o caos passa a ser o
único modo de manter a coesão.
📘 “O poder é mais
eficaz quando não precisa se manifestar.”
— Foucault (1975, p. 89)
4.
A expulsão simbólica do sujeito lúcido
Ao
perceber a disfunção, o fiscal psicólogo torna-se espelho da
consciência coletiva. Por enxergar o que os demais negam, passa a ser visto
como ameaça simbólica ao equilíbrio do grupo. O que se instala é o fenômeno da expulsão
simbólica do sujeito lúcido.
📘 “O sujeito do desejo
é aquele que, ao ver o que os outros não veem, torna-se insuportável para
eles.”
— Lacan (1960, p. 102)
A
liderança, ao se manter passiva, induz o fiscal psicólogo a sentir-se
deslocado — uma forma inconsciente de conduzi-lo à saída sem assumir o ato
explícito da demissão.
Esse mecanismo é comum em organizações onde a verdade é insuportável e,
portanto, precisa ser expurgada.
5.
O fiscal psicólogo e o desejo de salvar
Durante
muito tempo, o fiscal psicólogo identificou-se com o papel de salvador. Sua
formação teológica reforçou a crença de que o sofrimento tem valor redentor, e
que suportar a dor seria um testemunho moral. Contudo, a psicanálise mostra que
esse impulso pode esconder um desejo narcísico de onipotência — o de
acreditar que pode curar o outro sem que o outro queira mudar.
📘 “Ninguém pode ser
curado contra a sua vontade.”
— Freud (1912, p. 78)
Ao
perceber isso, o sujeito deixa de buscar ser o salvador e compreende que seu
verdadeiro papel é o de espelho reflexivo: mostrar, sem impor; acolher,
sem se anular.
6.
A liderança e o controle do caos
A
liderança, ao não reagir, controla o caos pelo silêncio e pela espera.
Essa estratégia, ainda que pareça omissão, pode também ser interpretada como mecanismo
de defesa institucional — uma tentativa inconsciente de evitar confrontos
diretos e preservar a própria imagem.
Para Bion
(1961), grupos ansiosos criam líderes simbólicos para conter suas angústias
primitivas. Quando o líder não suporta essa projeção, ele se retrai.
O resultado é o que se observa neste caso: um grupo desamparado, um
sabotador dominante e um sujeito lúcido em processo de exaustão simbólica.
7.
A travessia: do fiscal ao psicólogo
O
conflito, embora doloroso, é o motor da individuação.
O fiscal psicólogo compreende que sua Gestalt se encerrou: o
aprendizado foi completado.
O supermercado deixa de ser um emprego e torna-se um laboratório psíquico,
onde ele pôde observar na prática os conceitos que estudou — resistência,
projeção, transferência e contratransferência.
📘 “A vocação é a voz
interior que só se torna audível quando o ruído do mundo silencia.”
— Jung (1939, p. 112)
Agora,
o sujeito reconhece que permanecer seria repetir o ciclo da compulsão.
Sair, por outro lado, não é fuga — é ato consciente de libertação.
Ele aguarda, com serenidade, a oportunidade de atuar como psicólogo em uma
instituição, sabendo que o tempo da transição pertence ao amadurecimento.
8.
Conclusão
O
percurso do fiscal psicólogo demonstra como o trabalho, quando vivido
com consciência reflexiva, se transforma em campo analítico de
autoconhecimento.
A presença do sabotador, a omissão da liderança e a dor da sobrecarga foram
espelhos simbólicos que o obrigaram a olhar para si. Ele compreende, enfim, que
não é o salvador dos outros, mas o espelho que pode refletir o
inconsciente alheio — se o outro desejar se ver.
O
sofrimento que antes o aprisionava tornou-se instrumento de transcendência.
A travessia está completa: o sujeito não apenas sobreviveu ao ambiente, mas se
conheceu através dele.
📘 “O verdadeiro
terapeuta é aquele que conheceu as feridas do mundo e aprendeu a escutá-las sem
julgar.”
— Winnicott (1960, p. 59)
Referências
Bibliográficas
- BION, Wilfred. Experiências em Grupos.
Rio de Janeiro: Imago, 1961.
- FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.
Petrópolis: Vozes, 1975.
- FRANKL, Viktor. Em Busca de Sentido.
Petrópolis: Vozes, 1946.
- FREUD, Sigmund. Recordar, Repetir e
Elaborar. In: Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago,
1914.
- FREUD, Sigmund. Recomendações aos Médicos
que Exercem a Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1912.
- FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Rio de
Janeiro: Imago, 1923.
- JUNG, Carl Gustav. A Psicologia e o
Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1939.
- JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia.
Petrópolis: Vozes, 1953.
- JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o
Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1959.
- LACAN, Jacques. A Ética da Psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1960.
- LEWIN,
Kurt. Frontiers in Group Dynamics. Human Relations,
1947.
- WINNICOTT, Donald. Natureza Humana.
Rio de Janeiro: Imago, 1960.
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