O Reconhecimento do Ego de que Cumpriu Seu Papel no Ambiente de Trabalho: Uma Interpretação Psicanalítica
Ano 2025. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208
1.
Fundamentação teórica
O
processo pelo qual o sujeito reconhece que já cumpriu o papel que podia
desempenhar em determinado ambiente de trabalho pode ser compreendido, pela
psicanálise, como o momento em que o ego toma consciência do esgotamento do
investimento libidinal naquele contexto. Freud (1914/1996), ao desenvolver
o conceito de investimento libidinal do ego e dos objetos, afirma que a
libido é a energia psíquica derivada das pulsões de vida, podendo ser dirigida
tanto ao próprio ego quanto a objetos externos — como pessoas, atividades,
instituições ou ideais.
Enquanto
o trabalho proporciona prazer, reconhecimento e possibilidade de expressão
simbólica, o ego mantém ali um investimento libidinal ativo, sustentando
a motivação e o sentido subjetivo da função exercida. No entanto, quando o
ambiente deixa de oferecer significados, vínculos afetivos ou oportunidades de
crescimento, ocorre um desinvestimento libidinal, isto é, a energia
antes canalizada para aquele objeto é retirada, sinalizando que o sujeito já
extraiu dele tudo o que poderia para seu desenvolvimento psíquico (Freud,
1923/1996).
Nesse
sentido, o ego reconhece que “já cumpriu seu papel” quando percebe que continuar
investindo energia naquele espaço implicaria repressão de novos desejos e
estagnação de seu processo de individuação. Trata-se de um momento de tomada
de consciência, no qual o ego compreende que o trabalho, outrora fonte de
prazer e realização, passou a representar apenas uma obrigação sustentada pela
censura do superego — que impõe a permanência por medo, culpa ou necessidade de
aprovação social (Freud, 1923/1996; Lacan, 1953/1998).
Lacan
(1953/1998) acrescenta que o desejo do sujeito nunca se esgota; ele apenas se
desloca para novos objetos simbólicos à medida que o ego se reestrutura. Assim,
quando o sujeito sente que “não se reconhece mais” em determinada função — como
no caso do fiscal de caixa que não encontra mais sentido no ambiente do
supermercado —, esse sentimento pode ser interpretado como um sinal de que o
desejo inconsciente está convocando o ego a investir em novas formas de
realização.
Manter-se
em uma função sem libido representa, sob o ponto de vista psicanalítico, uma fixação
neurótica: o ego se submete ao superego e reprime o impulso de mudança, o
que pode gerar sintomas de angústia, fadiga emocional e adoecimento
psicossomático. Já o reconhecimento consciente de que o ciclo se encerrou
constitui um ato de maturidade e autonomia psíquica, pois o ego aceita
que sua missão naquele ambiente foi cumprida e que é hora de deslocar a energia
libidinal para novos projetos condizentes com seu desejo e vocação.
2.
Análise aplicada: o caso do fiscal de caixa
A
experiência do fiscal de caixa que percebe a perda do desejo e do prazer em
permanecer no ambiente do supermercado ilustra com clareza o processo de desinvestimento
libidinal. No início de sua trajetória profissional, o sujeito investia
libido na função por meio da identificação com o papel de colaborador
responsável, prestativo e comprometido com o funcionamento da instituição. Esse
investimento sustentava seu ego em equilíbrio com as exigências da realidade e
com o reconhecimento simbólico que obtinha do outro (clientes, colegas e
superiores).
Entretanto,
com o passar do tempo, o ego começou a vivenciar um conflito entre o desejo
interno e as imposições externas. O trabalho, antes fonte de satisfação e
pertencimento, passou a ser percebido como espaço de alienação e desgaste. O
sujeito não se via mais representado pela função, e o ideal do ego —
isto é, a imagem de quem ele gostaria de ser — deslocou-se para outro campo: o
da psicologia, onde poderia exercer um papel mais alinhado ao seu desejo
inconsciente de ajudar pessoas e promover bem-estar.
Nesse
ponto, a psicanálise interpreta que o ego já cumpriu seu papel simbólico
naquele ambiente. Ele aprendeu, amadureceu, internalizou experiências de
responsabilidade, convivência e limites — e, portanto, não há mais
necessidade de permanecer ali para sustentar o próprio desenvolvimento. O
vazio e o desinteresse que surgem são manifestações do fim do investimento
libidinal, e não simples preguiça ou desmotivação. Permanecer no mesmo
lugar, por medo ou culpa, significaria manter-se aprisionado à censura do
superego, que exige conformidade com padrões de estabilidade e produtividade
social.
Assim,
o reconhecimento de que “já cumpri meu papel” constitui um ato de libertação
do ego, que passa a se abrir para novas possibilidades de investimento
libidinal — neste caso, na prática da psicologia institucional ou clínica, onde
o sujeito poderá reinvestir sua energia em um projeto mais coerente com sua
identidade e vocação. A saída do ambiente do supermercado, então, não
representa fuga, mas transição evolutiva do desejo, marcando o início de
um novo ciclo de significação e crescimento psíquico.
3.
Considerações finais
Reconhecer
que se cumpriu um papel em determinado ambiente é um movimento essencial da
dinâmica psíquica saudável. Do ponto de vista da teoria freudiana, trata-se do encerramento
de um ciclo libidinal e da preparação para o reinvestimento da
energia em novos objetos e projetos. Esse processo reflete a capacidade do ego
de se reorganizar diante das exigências internas e externas, promovendo o
equilíbrio entre desejo, realidade e ideal.
No
caso do fiscal de caixa, esse reconhecimento simboliza a passagem de uma
identidade funcional para uma identidade vocacional, evidenciando o
amadurecimento do ego diante do próprio desejo. Como aponta Lacan (1953/1998),
o sujeito se constitui na relação com o desejo, e a fidelidade a ele é o que
permite o verdadeiro crescimento simbólico. Assim, o reconhecimento do
encerramento do ciclo não é uma perda, mas uma reconfiguração do ser em
direção ao que lhe é mais autêntico.
Referências
Bibliográficas
- Freud, S. (1914/1996). Introdução ao
narcisismo. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro:
Imago.
- Freud, S. (1923/1996). O ego e o id.
In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago.
- Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da
fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar.
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