Ano 2021. Escrito por Ayrton Junior Psicólogo CRP 06/147208
A
Psicologia como ciência e profissão tem a oportunidade de contribuir para uma
compreensão mais abrangente do racismo. Considerando os recentes avanços dos marcos
legais e das políticas públicas afirmativas de direitos humanos no Brasil, a
Psicologia cada vez mais é convocada para dimensionar e contribuir com o
fenômeno do racismo e seus efeitos e para investir na formação de profissionais
qualificados para uma atuação comprometida com a superação desta e de outras
causas de grandes desigualdades no país.
Portanto,
compreendemos que a discriminação racial e de gênero não se esgota na
exploração de classes sociais, e que o racismo brasileiro tem perpetuado mais
desigualdades raciais conferindo as pessoas negras, pessoas com identidade de
gênero, lugares cada vez mais precarizados e subalternizados, assim como o
sexismo naturalizado e enraizado perpetua as desigualdades de gênero. É sabido
que as políticas universalistas produziram mais abismos sociais do que reduziam
as desigualdades.
O
termo raça é um operador social utilizado para unir pessoas que possuem
semelhanças em seus aspectos físicos e, a partir desses agrupamentos, surgem
atitudes negativas frente a grupos específicos. Esta concepção é uma construção
social amplamente aceita e reforçada cotidianamente, pois a maioria das pessoas
ainda acredita na racialização ou racialismo, isto é, na ideia de que há
distintas raças humanas (ZAMORA, 2012).
Portanto,
podemos perceber que a ocultação e o silenciamento dos acirramentos e das
problemáticas que envolvem a questão racial no Brasil, é consciente e agenciada
por interesses políticos hegemônicos que privilegia historicamente um
determinado grupo, que defende claramente um projeto de nação não só
excludente, mas genocida. Como então fazer qualquer leitura de opressão de
classe que desconsidera o racismo como elemento fundante dessa sociedade? Assim
como da opressão de gênero. É de extrema importância pensarmos as intersecções
das opressões e suas combinações, pois elas vulnerabilizam socialmente
determinados grupos e operam integradas, gerando formas sofisticadas de
atualização das práticas racistas.
O
racismo é suportado por essas lógicas, que afirmam, explícita ou
implicitamente, que há uma raça superior a outras. A partir dessa
discriminação, condições culturais, políticas, de desigualdades sociais e até
psicológicas são tidas como oriundas de determinada raça e com isso se validam
diferenças sociais a partir de supostas diferenças biológicas. Com a aceitação
de que certos traços raciais são considerados inferiores, os negros, por terem
a cor da pele escura, são as maiores vítimas do racismo, o que justificaria sua
sujeição desvantajosa na sociedade. Esses movimentos, por fim, geram inúmeras
barreiras que dificultam o acesso ao ensino superior. Vale ressaltar que o
pensamento científico, que esteve sempre a serviço das classes dominantes,
forneceu bases para se pensar os negros desta forma, o que legitimou a
desigualdade de tratamento em relação aos brancos (ZAMORA, 2012).
Nem
sempre a psicologia esteve voltada para as questões que afligem a grande massa.
Considerada, por muito tempo, uma ciência a serviço de uma elite que fez, por
muitas vezes, uso de suas técnicas, para a validação de diferenciações étnicas
e sociais, para justificar o uso da força e para subjugar povos e garantir privilégios,
ela alcança popularização quando passa a se interessar por assuntos que
contemplam as necessidades sociais e isso significa olhar para fora da bolha.
Voltar o olhar para os conflitos vivenciados pela grande massa popularizou a
psicologia e também a salvou de permanecer como prática a serviço de um grupo
fechado e privilegiado que não a sustentaria por muito tempo.
Entretanto
o caráter elitista da ciência que se propõe a tratar da subjetividade que é ser
um humano ainda não foi perdido, cuidar das emoções continua sendo visto, por
muitos, como um capricho desnecessário. Mas vale aqui o questionamento de até
que ponto nós profissionais não estamos colaborando para manutenção desse
status. Psicólogas (os) que não reconhecem o caráter estruturante do racismo,
como uma dinâmica social a qual limita o acesso de determinados grupos étnicos
às oportunidades, embasada nas polaridades históricas de superioridade e
inferioridade racial, contribuem para a manutenção e fortalecimento de
compreensões alienadas e práticas violentas.
O
que carecemos mesmo é nos agastar frente à violência de toda e qualquer
natureza que ocorre na sociedade, na comunidade e isso inclui as ações
provenientes do racismo. O racismo é
estrutural, isso significa que ele está presente na sociedade brasileira desde
os primórdios de sua formação, com a colonização ibérica no continente
americano e o estabelecimento de um regime escravocrata. A intenção era de
transformar a população negra em mercadoria e ferramentas de trabalho. Vinha
amontoada em porões de navios negreiros e as parcelas dela que sobreviviam a
essa viagem eram submetidas a torturas e mantidas em condições subumanas de
trabalho. Em meio à naturalização de tantas violências, a Lei Áurea surgiu, em
1888, três séculos depois do início da escravidão no Brasil, como uma resposta
ao movimento abolicionista que vinha ganhando força. [...] Em sua obra
“Além do Princípio do Prazer” (1920, p.34), Freud afirma: a compulsão a
repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade
alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo
para impulsos instintuais que foram reprimidos.
No
entanto, embora a escravidão estivesse legalmente abolida, nenhum direito foi
assegurado aos negros. Sem acesso a terras e a qualquer tipo de indenização por
tanto tempo de subjugo, muitos permaneciam nos locais em que antes eram
explorados ou se submetiam a trabalhos pesados e informais. No momento da
abolição não houve uma forma de compensar o longo e violento processo ao qual
os negros foram submetidos e a mentalidade dos brancos não mudou pela simples
outorga da lei, o que de fato foi feito para assegurar igualdade racial?
Os
seres humanos são sujeitos apenas enquanto pertencentes a um grupo, e existe
uma aliança que se forma entre indivíduos de um mesmo grupo. O racismo seria
uma dessas alianças, inconscientemente forma-se um vínculo entre essas pessoas,
que, também inconscientemente, se unem e transmitem de geração em geração a
ideia de que é necessário inferiorizar outras pessoas por conta de uma
característica que precisa ser eliminada no caso, a negritude. […] a
forte ligação emocional com o grupo ao qual pertencemos nos leva a investir
nele nossa própria identidade. A imagem que temos de nós próprios encontra-se
vinculada à imagem que temos do nosso grupo, o que nos induz a defendermos os
seus valores. Assim, protegemos o “nosso grupo” e excluímos aqueles que não
pertencem a ele. (BENTO, 2014, p. 29)
Repetidamente,
o racismo é caracterizado pela opressão de uma etnia com mais poder sobre a
outra. Quando se fala de racismo reverso, parte-se da ideia de que o grupo
desfavorecido está oprimindo seu opressor. Um grupo étnico que sofreu mais de
300 anos de escravidão, fazendo parte de um dos últimos países do globo a
abolir a escravatura fato que tem apenas 130 anos, certamente não teria a mesma
força que seu opressor. Exemplo, quem se recorda do caso na mídia do entregador
de app o desfavorecido humilhado que conseguiu causar opressão no opressor
morador do condomínio em Valinhos por ser negro.
Além
de que existe o conceito de escravidão moderna [relações de trabalho em que
pessoas são forçadas a exercer uma atividade contra a sua vontade mediante
formas de intimidação]. Exemplo, o entregador de app o desfavorecido humilhado conseguiu
causar opressão no opressor morador do condomínio em Valinhos. Existem alguns tipos
de racismo na sociedade: Deste jeito o racismo acontece de formas discrepantes para
cada tipo de grupo/ e ou indivíduo, também existem distintas variações para
essa prática. Explicando de modo suscinto cada um deles.
·
Racismo cultural. O racismo cultural defende que
uma cultura seja superior à outra. Pode ser exposto por meio de crenças,
músicas, religiões, idiomas e afins, tudo que englobe cultura.
·
Racismo comunitarista. Também conhecido como
preconceito contemporâneo, esse tipo de racismo acredita que a raça não é
biológica e sim, vinda de uma etnia ou cultura;
·
Racismo ecológico [ou ambiental]. Praticado
contra à natureza [mãe terra], afetando comunidade e grupos.
·
Racismo individual. Parte de atitudes, interesses
e pensamentos pessoais, inclusive de estereótipos.
·
Racismo institucional. Praticado por instituições
e comprovado por números, dados e estatísticas. Acontece em lugares que os
negros são marginalizados: trabalho, educação, um exemplo é a porcentagem de
vereadores negros eleitos nas eleições de em relação aos brancos.
·
Racismo primário. Não conta com justificativas,
acontece de forma mais psicológica e emocional.
O
crime de racismo se configura quando alguém se recusa ou impede o acesso de uma
pessoa a estabelecimentos comerciais, bem como entradas sociais, ambientes
públicos, e também quando nega um emprego. O crime de racismo é inafiançável e
imprescritível, ou seja, quem praticou pode ser punido independente de quando
cometeu o crime. Deste modo, o problema do racismo no Brasil cai em uma espécie
de amnésia por parte da grande maioria da população branca, que diversas vezes
nem quando pratica o racismo se reconhece como racista. Afinal de contas, sempre
foi só uma brincadeira ou um mal entendido. No mais, como pode ser essa pessoa
racista se ela até tem amigos negros? Se sua empregada, seu motorista é como se
fosse da família.
A
verdade é que o racismo brasileiro se destaca pelo não dito e isso em
psicanálise tem peso, uma vez que o não dito primeiro tende a repetir-se, por
meio da compulsão a repetição e se consolida como uma negação e terceiro se
legitima como algo positivo, o mito da democracia racial. [...] Freud no
seu texto “Recordar repetir e elaborar” (1914), texto esse em que começa a
pensar a questão da compulsão à repetição, fala do repetir enquanto
transferência do passado esquecido dentro de nós. Agimos o que não pudemos
recordar, e agimos tanto mais, quanto maior for a resistência a recordar,
quanto maior for a angústia ou o desprazer que esse passado recalcado desperta
em nós.
Em
síntese, as práticas racistas se reiteram todos os dias ao mesmo tempo em que
se nega todos os dias, porque vivemos na farsa da democracia racial. O racimo
sempre se expressa na forma de uma violência. Violência essa relacionada à
questão narcísica. Diante do outro, da diferença, há uma necessidade narcísica
de eliminação deste. Tal eliminação pode ser física ou simbólica, onde se
subtrai todas as qualidades do outro a ponto de esse ser desumanizado e,
portanto, propícia à discriminação, à deslegitimação.
O
narcisismo se apresenta como um dos estágios iniciais da vida autoerótica da
criança, onde o Eu se acha plenamente ideal. Psicologicamente, o racismo vai ter
um tanto de resquício narcísico, por isso ele encontra tanta guarida na psique,
por mais que todos os argumentos contrários lhe digam de maneira racional que
não há diferença entre as raças, que a humanidade é uma só. Que não existem
raças mais ou menos inteligentes, e outros. Por outro lado, sabe-se que no
racismo há um quê de angústia, a angústia vista como medo. Mas qual o medo? Em
verdade, o ódio ao diferente não vem de sua diferença. Senão da semelhança que
este diferente tem com o odioso. [...] Esse medo marcará nossa memória,
de forma desprazerosa, e será experimentado como desamparo, “portanto uma
situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de
desamparo” (Freud, 2006, p.162)
Dessa
forma, o racismo se dá no aspecto de um conflito interno onde a estratégia
psíquica é a autopreservação do narcisismo, onde eliminar o outro é eliminar
também ou outro dento do próprio Eu, reconstituindo, ainda que de forma
patológica, por meio da angústia e da formação de sintomas, o Eu plenamente
conciliado com uma perspectiva fictícia de Ideal do Eu. Desse modo, esse
indivíduo racista em conflito narcísico, que tem ódio, não pode se descobrir
como racista. Ele precisa permanecer no lugar do não dito e reiterar seu
preconceito, discriminação de forma positiva. [...] “A angústia é,
dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode
reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a
que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida
cotidiana. A angústia faria o homem elevar-se da traição cometida contra si
mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o
autoconhecimento em sua dimensão mais profunda” (CHAUÍ, 1996 p.8-9).
Com
isto o negro, o diferente, não pode ser igual a mim pela via das cotas, mas da
meritocracia. Quer algo mais positivo para legitimar o racismo à brasileira ao
afirmar que todos podem ser iguais, todavia por seus próprios méritos. Não
importando à origem social, a qualidade do ensino escolar, universitário, a
alimentação diária, o salário, o tipo de emprego, o tratamento social recebido
pela cor da pele, e o que você pensar enquanto termina a leitura do artigo. Mas
há também uma espécie de narcisismo coletivo, social, patológico. As ideias
racistas de supremacia branca em relação a outras raças encontraram abrigo nas
mais variadas instituições de ensino à época, bem como nos mais diversos
países, tendo na ascensão do nazismo o ápice daquilo que se tronara o
holocausto contra o povo judeu e assassinato de outras tantas etnias.
Entretanto
mesmo depois de desmonte teórico e empírico dessas teorias eugenistas, como
elas persistem em larga escala em homens e mulheres comuns nas mais distintas
classes sociais? Pois, na própria psique humana há lugar para o alojamento
deste tipo de tese que ser negro no Brasil é tarefa cotidiana difícil. Onde
qualquer cidadão negro já sofreu mais de uma vez a dor da discriminação racial.
Seja em brincadeiras racistas, nas atitudes persecutórias de um segurança de banco,
de um vendedor de loja de vestuário, de um entregador de app, seja em uma
entrevista de trabalho ou em uma abordagem policial agressiva.
Além
das situações vividas pessoalmente, sabe-se que a mente humana, e só a humana,
reage também ao sofrimento de terceiros, sobretudo a pessoas cujo afeto nos são
preciosos. O racismo produz uma patologia social no racista e um sofrimento
psíquico na vítima. Compreendamos, pois que o racismo não só coloca o nego, mas
também a discriminação baseada no gênero ou sexo de uma pessoa em posição de
inferioridade social e isto pode conferir forte adoecimento psíquico.
Referência Bibliográfica
CHAUÍ, MARILENA.
HEIDEGGER, vida e obra. In: Prefácio. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1996.
FREUD,
S. (1920), "Além do princípio do prazer” In: FREUD. S. Obras completas de
S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVIII.
FREUD,
S. (1996). Obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1914).
"Recordar, repetir e elaborar ", v. XII
FREUD, S.
O ego e os mecanismos de defesa. Rio de Janeiro: Biblioteca Universal
Popular,
1968
BENTO,
Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil . In. Psicologia
Social do Racismo. Yray Carone e Maria Aparecida Silva Bento (Orgs.). 6. ed. –
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
ZAMORA,
M. H. R. N. Desigualdade racial, racismo e seus efeitos. Fractal, Rev. Psicol.,
Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 563-578, Dez. 2012.
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