Julho/2020.Escrito por Ayrton Junior -
Psicólogo CRP 06/147208
O
presente artigo tem interesse em produzir uma leitura despertando a atenção do
leitor(a) a olhar para o fenômeno sorte ou azar diante dos acontecimentos em nossas
vidas. Outros, ao contrário, falam de uma vida amplamente desafortunada e
queixam de mal-estar, apatia, tristeza/ eu ou fracassos de forma generalizada,
se apercebem como indivíduos de azar, exemplos, se sentem privados de dinheiro,
excluídos de trabalhar por estarem na meia-idade, conflitos familiares, não
conseguem um relacionamento amoroso e se veem infelizes. Já os cristãos
atribuem a causa como sendo a vontade de Deus para suas vidas ou até o diabo.
Caso suas vidas estejam ótimas significa que Deus está abençoando, porem se
estiverem no fracasso passam a proferir que é o diabo o causador do infortúnio
ou é a vontade de Deus para suas vidas que isto aconteça ou até estejam em azar/
e ou em transgressão.
Percebo
o mecanismo de defesa do ego na generalização, onde o indivíduo coloca no
coletivo suas questões internas e projeção, pois as vezes as pessoas se
recriminam ou se sentem mal por terem certos pensamentos ou impulsos. Podem
atribuí-los então a alguém [desconhecido ou conhecido, Deus, diabo], projetando
nessa pessoa os seus próprios sentimentos. Há, ainda, a somatória das duas
queixas na qual a falta de sorte generalizada, algum sintoma se particulariza.
Por sua vez, não são raros os que se sentem acometidos pelo referido mal-estar
e tristeza generalizados, a despeito de se considerarem pessoas de sorte, pois têm
sucesso profissional, família, dinheiro, amor, contudo, ainda assim, não são
felizes. [...] O
homem é projeto. A necessidade de viver é uma necessidade de preencher esse
vazio, de projetar-se no futuro. É o anseio de ser o que não somos, é o anseio
de continuar sendo. O homem só pode transcender se for capaz de projetar-se.
Assim, ele sempre busca um sentido para sua vida. “A angústia contém na sua
unidade emocional, sentimental, essas duas notas ontológicas características;
de um lado, a afirmação do anseio de ser, e de outro lado, a radical temeridade
diante do nada. O nada amedronta ao homem; e então a angústia de poder não ser
o atenaza, e sobre ela se levanta a preocupação, e sobre a preocupação a ação
para ser, para continuar sendo, para existir (MORENTE, 1980, p.316)
Chamo
a tenção sobre o porquê da insistência dos sintomas, sentimentos e
acontecimentos dos quais se queixam e para os quais buscam uma solução. Soma-se
à tal questão a estranheza frente ao que parece se reapresentar de forma
misteriosa, ou, como dizia Freud, demoníaca: a má sorte, o fracasso, o
abandono, a tristeza. Nas neuroses de transferência, um sintoma se apresenta
muito claramente e o sujeito pede, para se livrar disso que não anda bem e
insiste, pede para se livrar do sintoma que, muitas vezes, considera repetir-se
em sua vida, exemplo a compulsão a repetição do desemprego, de relacionamentos
abusivos, de condições de desabrigado, drogadição e alcoolismo, de privação
financeira e outros.[...] Freud no seu texto “Recordar repetir e elaborar” (1914),
texto esse em que começa a pensar a questão da compulsão à repetição, fala do
repetir enquanto transferência do passado esquecido dentro de nós. Agimos o que
não pudemos recordar, e agimos tanto mais, quanto maior for a resistência a
recordar, quanto maior for a angústia ou o desprazer que esse passado recalcado
desperta em nós.
Por
outro lado, no que Freud denomina de caráter, temos sujeitos que apresentam um
mal-estar e fracassos generalizados, sem uma formação sintomática muito bem
estabelecida. Freud se intriga muito com esse segundo tipo, propõe que esses
sujeitos possuem alguns traços de caráter que os levam a repetir tais fracassos
[profissional, casamento, finanças, desabrigado, situações de infortúnio], embora
de forma que eles se apresentam como uma força demoníaca, como se o sujeito sofresse
passivamente [masoquismo], como se fossem uma armadilha do destino.
Então,
quando realço as diferenças na maneira como aqueles que são afetados por alguma
casualidade e falam de seu sofrimento, me refiro não apenas à óbvia
singularidade do discurso e do sofrimento de cada um, mas, em especial à
diferença apontada por Freud entre a compulsão a repetição que ele considera atrelada a uma
formação sintomática e aquela que ele associa aos fracassos mais generalizados
e como que pertencentes ao acaso. [...] “A angústia é, dentre todos os sentimentos e modos da
existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua
totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na
monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem
elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas
mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais
profunda” (CHAUÍ, 1996 p.8-9).
Entendo,
o valor da formulação freudiana, a qual nos indica a necessidade de precisarmos o conceito de repetição e já
reconhece no mesmo mais de uma dimensão e a transcendência da mera reprodução. Compreendo
que podemos encontrar esses elementos na prática. Quando alguém chega dizendo
que o desemprego e o sujeitar-se a qualquer ofício que não seja a sua formação
técnica ou acadêmica se tornaram um tormento, um sofrimento do qual quer se
livrar, é possível dizer que apresenta sua questão de trabalho como um sintoma [pois
reconhece algo que não vai bem, do qual quer tratar e no qual se enxerga
implicado] e se pergunta porque repete o cenário novamente em outro periodo.
Por
que estou sempre na condição de desempregado/ e ou trabalhando em ocupações que
não sinto prazer? Porque continuo fazendo isso, se sei que não me faz bem? Ou
ainda, quando alguém se queixa da falta de oportunidade e se pergunta. Porque trabalho
em ocupações que me trazem desprazer? Insisto, nessas situações, a pergunta
sobre a repetição está colocada de maneira direta a insistência de algo
atrelado ao sofrimento, atrelado ao sintoma, lhe intriga e o sujeito se diz aí
implicado. [...] O
mal de tudo isso é que buscam as agitações da vida como se a posse das coisas
que buscam devesse torná-los verdadeiramente felizes. O problema é que não os
tornam, nunca estão satisfeitos com nada. A grande consequência disso é que
abandonam seu projeto essencial. As preocupações da vida constantemente os
distraem e o perturbam. “O ser-humano, em sua vida cotidiana, seria promiscuamente
público e reduziria sua vida a vida com os outros e para os outros,
alienando-se totalmente da principal tarefa que seria o tornar-se si mesmo”
(CHAUÍ, 1996 p.8).
Entretanto,
a pergunta sobre a repetição também está presente quando, de forma aparentemente
passiva, o sujeito se encontra sempre no mesmo lugar [ex.: desempregado, no
mesmo emprego que lhe gera insatisfação ou desprazer e outros que você
conseguir imaginar agora] e isso lhe provoca angústia ou mal-estar
generalizados. Sujeitos que parecem [destinados à ingratidão], ao abandono, à
solidão, ao fracasso [profissional, amoroso, afetivo e etc.], pois em várias
esferas de suas vidas isso se repete.
Homens
ou mulheres cuja vida amorosa é sentida como um fracasso eterno, com relacionamentos
que contemplam fases e finais semelhantes ou mesmo idênticos. Indivíduos que
profissionalmente não crescem e são vítimas dos mais variados acontecimentos,
exemplo, roubo de sócio, demissão em massa, depressão econômica que leva à
perda do emprego, falência de organizações. Nesses casos, a pergunta sobre a compulsão
a repetição é feita colocando em questão o acaso, o caos, o destino, o azar, a
falta de fé em si mesmo e até em Deus ou má sorte. Foi por este tipo de
repetição que Freud mais se interessou, talvez porque ela coloca em cena o além
do princípio do prazer, evidenciando a contravenção da natureza no humano que
Freud associou ao conceito de determinismo psíquico. [...] Em sua obra “Além do Princípio do Prazer” (1920, p.34), Freud afirma:
a compulsão a repetição também rememora do passado experiências que não incluem
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram
satisfação, mesmo para impulsos instintuais que foram reprimidos.
Nem
sempre a aparente boa sorte ou sucesso são vivenciados de forma feliz e, nem
sempre, aquilo que olhares externos veem como fracasso ou como má sorte faz a
infelicidade do sujeito. Pois bem, mas então, o que é e onde está a sorte ou
azar? E ainda, o que pode ser a boa sorte para o sujeito do qual a psicanálise
se ocupa. Exemplo, um adulto chegou demandando, através de sua queixa, o
desemprego e acreditava que era com um emprego que alcançaria a independência
financeira, autonomia, quitações de compromissos financeiros com bancos,
possibilidade de alugar uma residência, ajudar o filho e outros. Posição
absolutamente exemplar da ideia de empregabilidade que temos na cultura. Pesa sobre essa formulação um valor moral,
muito explorado pelo utilitarismo e pelo capitalismo. Entendo que é essa independência
que, não apenas esse adulto, mas alguns dos analisandos chegam demandando.
De
uma forma ou de outra, apostam que com a análise serão indivíduos melhores, bem
adaptados e, então, merecerão ou alcançarão o emprego sonhado. Certamente, não
é isso que uma análise pode oferecer, entretanto, porque trabalhando, esse
adulto e quem mais apostar em uma análise percebe que boa sorte e sucesso nem
sempre andam juntos e que o encontro faltoso da compulsão a repetição é
necessário e traz boa sorte.
A
partir daí, o sintoma/ e ou resistência perde sua função e se torna
prescindível, assim, a independência deixou de ser temerosa e a ideia de desempregado
adquiriu uma outra dimensão; ele pode pensar ser independente ao invés de se
escravizar sendo o bom adulto para merecer o emprego que o levará a
independência financeira para honrar consigo mesmo todos os compromissos
assumidos. [...]
Esse medo marcará nossa memória, de forma desprazerosa, e será experimentado
como desamparo, “portanto uma situação de perigo é uma situação reconhecida,
lembrada e esperada de desamparo” (Freud, 2006, p.162)
Todos
precisamos de sorte em nossas vidas, não acha? Nas mais variadas situações,
exemplo, um emprego que aparece, uma equipe de colegas de trabalho que funciona
bem nesse emprego; um amor que chega, se fixar em determinada localidade e
permanece sempre bem vivo; ou até um carro desgovernado na estrada que não vem
bater contra nós. Um emprego é resultado da sorte? Quanto maior é a
responsabilidade que nós assumimos em nossas vidas, menor será a porcentagem de
azar que vai nos acontecer.
Você
pode não conseguir aquela grande oferta de emprego, pois depende de muitos
fatores que não controla; contudo se, se preparar e fizer tudo que estiver a
seu alcance para a oportunidade chegar, será mais fácil e mais provável que a
oportunidade vá até você. O mesmo acontece na sua relação com as pessoas ao seu
redor, em especial com sua família, seus amigos, seus parentes, seus vizinhos,
seus colegas de profissão e etc. Se na sua família tiver pessoas que, também,
assumem sua parte de responsabilidade em suas vidas, será mais fácil para todos
levarem vidas felizes. Agora caso haja indivíduos que não assumem suas
responsabilidades o infortúnio estará sempre a sua porta.
Para
que você não tenha de resolver os problemas que elas criaram por azar, ou o
contrário, pois assumir a responsabilidade é um ato importante, embora as vezes
somos lançados em eventos forçadamente causando consequências desastrosas para
outras pessoas involuntariamente, o que dá a impressão de falta de
responsabilidade ante a percepção do outro.
Contudo
se você levar a vida como um jogador, arriscando em demasiado e sem qualquer precaução,
lembre-se que pode ficar sem recursos e aí o azar chegará, certamente. Porem se
você apelar para o que pode controlar em sua vida, perceberá que, muitas vezes,
o azar é parcialmente responsabilidade nossa. O senso comum, considera sorte
como um acaso, algo que não temos controle [ex.: ganhar na megasena, jogo de
bingo], simplesmente coisas boas acontecem em nossas vidas sem que tenhamos a
menor interferência sobre isso, como algo mágico ou aleatório. Algumas pessoas
mais pragmáticas entendem a sorte como o encontro da preparação e da
oportunidade, outras mais espiritualizadas, consideram sorte como a fé em meio a
resposta de Deus às nossas orações, ou ainda existem aquelas que praticam a lei
da atração. [...]
O ser humano é esse nada, livre para ser alguma coisa. “Suspendendo-se dentro
do nada o ser aí sempre está além do ente em sua totalidade. Este estar além do
ente designamos a transcendência. Se o ser-aí, nas raízes de sua essência, não
exercesse o ato de transcender, e isto expressamos agora dizendo: se o ser-aí
não estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em
relação com o ente e, portanto, também não consigo mesmo. Sem a originária revelação do nada não
há ser-si-mesmo, nem liberdade. (HEIDEGGER, 1996, p. 41).
Eu
basicamente sempre me dispus de esforço físico e mental para alçar os meus
objetivos, entretanto algumas vezes não fui sucedido em minhas empreitadas,
algumas mais fáceis consegui, outras mais difíceis com dedicação e tempo também
consegui. Observo que seja assim para todos, ou seja, cada um com os seus
desafios que, olhando de longe, não podemos sequer imaginar. Porém, alguns
alcançam o sucesso, outros não. Será sorte ou azar? Serão todos empreendedores,
todos presidentes, todos coletores de lixo, todos mendigos, todos vendedores
ambulantes, todos flanelinhas, todos motoristas de Uber, todos médicos e o que
você conseguir imaginar agora enquanto lê o artigo.
Algumas
decisões na vida tornam as coisas mais difíceis, os processos mais lentos,
exemplo, as mudanças de emprego, de moradia, os recomeços em outros países, em
outros relacionamentos, em outras escolas. Ainda há aquelas situações em que a
vida decide por nós, exemplo a crise econômica, a falência da empresa a qual
você trabalhou, o fechamento de tal empresa em tal estado que levou a mudança
para outro estado por causa de impostos levando você a ficar na ociosidade
involuntária e aí levamos uma rasteira, caímos e precisamos nos reerguer, nos
reinventar. As reviravoltas da vida exigem maior esforço para que novas
realizações possam acontecer. Neste contexto, talvez sorte seja melhor
traduzida em persistência, perseverança.
É
o ser humano quem o outorga, em função de seus desejos e seus traumas. Neste sentido,
existe a tendência a ver coincidências, sorte ou azar onde elas não existem.
Então do azar, podemos extrair algo bom para nos alavancar na tentativa de
sermos bens sucedidos e pessoas melhores. A saída da compulsão a repetição daquilo
que nomeamos e reconhecemos como azar em nossas vidas pode nos levar a uma
qualidade de vida melhor. “Se a repetição nos torna doentes, é também ela que
nos cura”. (DELEUZE, 1988, p.48). A repetição só se institui ao se disfarçar e
só se disfarça ao se instituir. Através de máscaras é que se disfarça para
encobrir outras máscaras, umas sobre as outras. O que o sujeito repete,
disfarça, mascara são as inúmeras fantasias de amores colocados no lugar da
primeira fantasia infantil de amor. Desta forma a repetição seria um simulacro,
onde a diferença, segundo Deleuze (1988), seria compreendida na repetição.
Quando
a transferência se torna excessiva ou hostil, a resistência é que determinará o
material que será repetido no exemplo, desemprego, relacionamento amoroso abusivo,
novo casamento após o divórcio, novo emprego e outros. Repetir sob a forma de
resistência é repetir suas inibições e seus traços patológicos de caráter.
Repete para não recordar. Repete seus sintomas, como forma de afastar seu
material do passado e mantê-lo firme ao presente. Segundo Freud, devemos
desarmar está parede de resistência para que o paciente possa ter acesso as
suas recordações, ao seu passado. Com a resistência superada, o paciente poderá
entrar em contato, de forma consciente ou não, com o material recalcado e,
assim, ter a oportunidade de elaborar tal conteúdo.
É
a partir e graças à repetição que se dá e é especificamente trabalhada no campo
transferencial, que o sujeito pode atualizar e reorganizar seu mundo interno e
efetivar sua conturbada vida afetiva.
Referência
Bibliográfica
CHAUÍ, MARILENA.
HEIDEGGER, vida e obra. In: Prefácio. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1996.
DELEUZE,G.
Diferença e Repetição. Tradução : Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Graal, 1988.
FREUD,
S. (1920), "Além do princípio do prazer” In: FREUD. S. Obras completas de
S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVIII.
FREUD,
S. (1996). Obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1914).
"Recordar, repetir e elaborar ", v. XII
FREUD, A.
O ego e os mecanismos de defesa. Rio de Janeiro: Biblioteca Universal
Popular,
1968
HEIDEGGER,
M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996
MORENTE,
MANUEL G. Fundamentos da filosofia: lições preliminares. 8 edição. São Paulo:
Mestre Jou, 1980.
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