Outubro/2019. Escrito por
Ayrton Junior - Psicólogo CRP 06/147208
Ao
assistir a série no Netflix GREY’S ANATOMY ou a anatomia de Grey, observo que a
protagonista em dado momento se utiliza da mentira para se beneficiar diante de
seus colegas médicos. Naquele instante me distancio do preconceito, das atitudes
de julgar e críticas e procuro a compreensão das razões que leva um indivíduo a
mentir para o outro em dada circunstância. Concebo por meio de três razões:
mentir porque dizer a verdade ao outro doí; mentir por ter medo em ser
repreendido pelo outro, pois não se tem como prever a reação do outro e mentir
com a intenção de prejudicar literalmente o outro.
GREY’S
ANATOMY é uma série muito interessante, pois acontece dentro de um ambiente
hospitalar com diversos tipos de casos clínicos em que estão presentes a
medicina, a enfermagem, a psiquiatria e a psicologia. Os profissionais ajustam
seus comportamentos para manter a relação entre eles. É um ambiente onde se exercita a ética
profissional, pois não se poderia mentir ao paciente para lhe informar sobre
seu quadro clínico, embora as vezes se utilizam da mentira benéfica para não
causar um pensamento disfuncional no paciente que pode agravar o quadro clínico
no pós operatório, e neste caso a mentira benéfica usada no ambiente hospitalar
é na intenção de não gerar angustia emocional ao paciente além do que ele já
tem como dor física e emocional.
Para
se compreender esse tipo de mentira é necessário distanciar-se do pensamento
preconceituoso, estereótipos e discriminação para depreender de modo
intelectual a mentira benéfica usada no ambiente hospital, onde é usada por uma
pessoa que tem a intenção de ajudar os outros. Por exemplo, os médicos que vão
até o paciente em seu leito de morte para levantar seus ânimos ou prescrever
uma falsa medicação, embora seja uma mentira não causará danos.
Mas
o ambiente hospitalar é também permeado de mentiras nas relações pessoais entre
os profissionais, onde se observa o medo em ser repreendido pelo outro. Já a
mentira na intenção de prejudicar literalmente o colega residente em medicina é
percebido nas intenções de galgar uma posição renomada de liderança junto aos
colegas. Às vezes o sujeito do discurso nada conta; nega; falha; distorce;
resiste; esquece; fantasia; dissimula e, até, engana, entretanto, assim mesmo,
sempre comunica. Ainda que a fala seja falácia, a mentira revela sempre uma
faceta da verdade daquele ser, pois todo o pensamento precede a um pensador e a
escolha de uma [máscara social] denuncia a personalidade do seu intérprete.
Pois
é, em todo mentiroso abriga um núcleo verdadeiro. Ademais, a mentira necessita
de um receptor [você], e pede a presença de um outro, no caso, o Outro a se
tentar enganar é a si mesmo. Portanto, mentira não é o mesmo que falsidade,
mas, certamente é uma distorção da verdade. As pessoas do senso comum tendem a
pensar equivocadamente associando o ato de falsidade de um sujeito ao ato de
mentira, então neste momento você leitor(a) tomou compreensão que falsidade não
é mentira e pode a partir de agora se desconstruir do pensamento equivocado de
que falsidade é igual mentira.
O
gozo do mentiroso está em colocar o princípio do prazer acima do princípio da
realidade, manipulando-a. Tenta pelo discurso fazer possível a causa
impossível. Por isso, em muitos casos, em função do medo da rejeição, quando
esse falso eu passa a ser tratado como verdadeiro, é comum o sentimento de
futilidade e a desrealização com a própria vida. Se a mentira é uma proteção da
integridade do ego, então só pode mentir quem tiver uma integridade de ego a
ser protegida. Daí se deduz que o louco não mente. Logo, que só a criança
normal mente. Portanto, a mentira na infância é volitiva e a criança só elabora
uma mentira se e somente se tiver a intenção de mentir. A mentira é uma conduta
plenamente consciente. A mentira na infância tem um papel importante na
construção da personalidade. Na vida adulta, deverá funcionar como proteção do
conjunto dos elementos que possibilitaram essa construção, isto é, a
integridade do ego. [...] Freud no seu texto “Recordar repetir e
elaborar” (1914), texto esse em que começa a pensar a questão da compulsão à
repetição, fala do repetir enquanto transferência do passado esquecido dentro
de nós. Agimos o que não pudemos recordar, e agimos tanto mais, quanto maior
for a resistência a recordar, quanto maior for a angústia ou o desprazer que
esse passado recalcado desperta em nós.
A
mentira pode surgir por várias razões: receio das consequências [quando tememos
que a verdade traga consequência negativas], insegurança ou baixa de autoestima
[quando pretendemos fazer passar uma imagem de nós próprios melhor do que a que
acreditamos], por razões externas [quando o exterior nos pressiona ou por
motivos de autoridade superior ou por coação], por ganhos e regalias [de acordo
com o senso comum, se mentir traz ganhos
vale a pena mentir, já que ficamos em vantagem em relação aos que dizem a
verdade] ou por razões patológicas.
Na
infância ou vida adulta mentimos para nos isentarmos das culpas. Muitas vezes
os adolescentes, os adultos descobrem que a mentira pode ser aceite em certas
ocasiões e até ilibá-los de responsabilidade e ajudar a sua aceitação pelos
colegas. A mentira pode ainda surgir como uma dependência, quando dita de uma
forma compulsiva. Os dependentes da mentira sabem que estão a mentir, embora
não se conseguem controlar, num processo que surge de uma forma muito
semelhante ao do vício do jogo ou à dependência de álcool ou de drogas. [...]
O sentimento de culpa é algo amplamente abordado pela religião, filosofia e
jurisprudência. Para a Psicanálise, é a experiência edípica que inaugura as
bases da moralidade; e o superego, sequela deixada pelo Édipo, a instância
responsável pela veiculação da culpa. O sentimento de culpa é o pilar da
civilização, pois através deste, as pulsões de destruição inerentes ao ser
humano seriam redirecionadas para o bem-estar da humanidade (FREUD, 1913/1974).
A
psicologia da mentira. Porque todo mundo mente? Bem, precisamos começar
compreendendo que todas as pessoas mentem. Crianças quando aprendem a falar,
mentem. Idosos e adultos, eu e você também mentimos. Mas por que? Qual é a
causa para haver tanta mentira no mundo? Ora, o objetivo da mentira é sempre
este: evitar uma resposta negativa, uma resposta aversiva. A pessoa que mente
pensa que é melhor, mais vantajoso dizer uma (in)verdade do que dizer a
verdade. A verdade é sentida como algo que provocará uma resposta pior e
desfavorável. A mentira é comum, está por toda a parte e é dita milhares de
vezes ao nosso redor e, talvez, por nós mesmos. [...] Em sua
obra “Além do Princípio do Prazer” (1920, p.34), Freud afirma: a compulsão a
repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade
alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo
para impulsos instintuais que foram reprimidos.
O
que não quer dizer, claro, seja algo a ser louvado. Dizer que está tudo bem
quando encontramos um conhecido na rua [quando na verdade tudo está a ir mal] é
uma mentira pequena, quase sem consequências. Outra coisa, é mentir em um
relacionamento próximo, como nos casos de traição. Ainda que seja difícil
admitir, todas as pessoas mentem. Quantas vezes você estava cheio de problemas
e respondeu que tudo estava bem, por exemplo? Ainda que esta seja uma mentira
simples e que não prejudica ninguém, não deixa de ser uma mentira. As
mentirinhas do dia a dia fazem parte da vida em sociedade, e não trazem sérios
problemas à vida de ninguém.
Porém,
algumas pessoas não sabem se relacionar sem mentir e usam a mentira como
principal ferramenta para se beneficiar e prejudicar os outros. Essas pessoas
não medem consequências para manter a mentira, e não se importam se alguém está
sendo prejudicado com isso. A mentira pode ser usada como proteção, em que as
pessoas mentem porque esta é uma ação que funciona e, a partir daí, continuam
mentindo para obter bons resultados.
Ainda
que a mentira traga perdas e seja sempre um risco, ela funciona como um
mecanismo de proteção para evitar dor ou para obter alguma coisa. Na maior
parte das vezes o hábito de mentir é um comportamento inconsciente, e algumas
pessoas têm um vazio emocional tão grande que preferem correr o risco de serem
descobertos do que ter que enfrentar a dor ou se sentir rejeitado.
Mentir
é natural, faz parte do ser humano, agora enfrentar a realidade nua e crua é
muito cruel. Contar uma verdade requer encarar as coisas da forma mais intensa
e muitas vezes não estamos preparados para isso. Mentimos, então, como forma de
escapar pelo caminho da fantasia. Com a mentira, podemos manipular realidades,
temos o poder de tornar real algo que imaginamos, que desejamos; podemos dar um
susto e depois voltar no tempo, afirmando que aquela terrível história que foi
contada não passa de uma brincadeira ou mentira.
Para
a psicanálise a mentira está atrelada a alguns mecanismos de defesa como o da
negação. Uma ligeira fuga da realidade não faz mal a ninguém, Será? Se a
mentira é corriqueira deve-se tomar apenas cuidado com as consequências, mas
caso ela seja a única forma de o sujeito funcionar, e se transforma em prática
cotidiana, aí sim a situação é preocupante, pois, por trás da mentira está a
dificuldade da pessoa se defrontar com sua realidade. Existem aqueles que
mentem de forma compulsiva, outros o fazem sem pudores para tirar vantagem , se
dar bem e em casos mais extremos, tem realmente o intuito de fazer mal. Pessoas
assim, desconsideram totalmente os sentimentos dos outros e são capazes das
piores atitudes e das mentiras mais cabeludas para conseguir o que desejam.
Roubam,
trapaceiam e até matam se for preciso. Para eles, não há o menor problema em
recusar normas, regras e valores, sentem inclusive prazer ao causarem danos e
dores ao outro. Existe uma imposição do seu desejo e para isso, tratam o outro
como objeto. Sujeitos assim, não toleram a frustração e tornam-se agressivos
quando contrariados. Simulam emoções, atuam, manipulam e não sentem culpa ou
remorso diante do que fazem. O recurso é
a mentira ou a tendência para esconder a verdade. A verdadeira mentira, essa,
implica alguma intencionalidade e está normalmente associada sobretudo a dois aspetos:
evitar castigos ou desiludir o outro, ou conseguir algo que deseja muito.
Assim,
podemos ver alguma legitimidade no recurso à mentira, contudo é importante não
a validar nem reforçar o comportamento de forma negativa. A mentira frequente
pode estar associada a sofrimento emocional e constitui um padrão de
comportamento inadequado. Muitas vezes as mentiras são um recurso usado quando
a verdade é demasiada dolorosa ou humilhante, ou como chamada de atenção. O
recurso à punição e ao castigo deve ser evitado, visto que reforça a tendência
para utilizar a mentira como estratégia de evitar; antes se deve procurar
reforçar a relação de confiança.
As
razões pelas quais as pessoas mentem são diferentes em cada momento e
circunstância; assim, compreender suas verdadeiras razões pode ser uma tarefa
difícil, já que muitas vezes nem elas mesmas sabem. Este é um sinal que nosso
cérebro nos envia para nos proteger. Apesar de a nossa mente não saber qual é a
realidade, está decodificando os sinais para nos ajudar a tomar as decisões
corretas.
O
mentiroso eventual. Todos fomos alguma vez. Este tipo de mentiroso não costuma
mentir, mas pode fazê-lo para se proteger ou proteger alguma outra pessoa. Sua
mentira é uma maneira de enfrentar o medo de alguma parte da sua realidade. O
mentiroso eventual costuma pensar muito bem no que vai dizer para evitar
contradições, mas como não está acostumado a mentir, seu corpo o trai.
O
mentiroso frequente. Diferente do mentiroso eventual, este mentiroso não perde
tempo para analisar seus argumentos, porque está sempre mentindo e já sabe como
fazê-lo. Apesar de sua experiência, seu corpo e expressões corporais muitas
vezes contradizem suas palavras e ações. O mentiroso natural. Este tipo de
pessoa mente continuamente e às vezes já não é capaz de diferenciar as mentiras
das verdades. Costumam cair em contradições óbvias que depois tratam de
corrigir com argumentos muito sofisticados.
O
mentiroso profissional. Este tipo de pessoa mente para conseguir um objetivo
específico. Tende a estudar os nossos argumentos e sabe o que dizer. Além
disso, costuma treinar para dominar sua linguagem corporal e passar a imagem
que deseja. A mentira pode ter algumas explicações, como por exemplo, uma forma
de fugir de um controle, de alguém que ameaça e dá bronca; ou uma forma de
fazer com que o indivíduo se sinta melhor diante de suas fraquezas. Algumas
consequências desses comportamentos geram subprodutos [sentimentos]. Ou seja, o
sujeito que obtém reforçadores negativos, sendo eles broncas e castigos,
provavelmente emitirá comportamentos de esquiva ou fuga. Estes comportamentos
poderão ser mantidos se o agente controlador continuar emitindo comportamentos
que punam o sujeito.
A
mentira pode ser relacionada a algumas situações em que a pessoa percebe estar
sendo ameaçada por outra. Essa ameaça pode ser bronca, um castigo, ou a
retirada de algo bom na vida daquela pessoa. O problema é quando o mentiroso
vive em função das suas (in)verdades, ele sofre para evitar que a mentira seja
descoberta, cria situações e outras histórias para sustentar e se torna
vigilante contínuo de si mesmo e passa a viver num estado permanente de stress
que a longo prazo, pode até causar doenças. Num adulto a mentira pode ser uma
forma de a pessoa se auto enganar, e assim diminuir a dor.
Referência
Bibliográfica
FREUD,
S. (1920), "Além do princípio do prazer” In: FREUD. S. Obras completas de
S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVIII.
FREUD,
S. (1996). Obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1914). "Recordar,
repetir e elaborar ", v. XII
FREUD,
S. (1912/1913) “Totem e Tabu” in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
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